Estas técnicas destinam-se a ser exercitadas por aqueles que buscam o sofrimento intenso e que não estão para entrar em tréguas com as mentiras que estruturam o mundo e o sujeito. É òbvio que há uma alternativa, menos nobre, que consiste em pactuar com as ilusões e a ingenuidade. Mas será que há escolha possível?
Hildegardo Caronte
1. Desconcentra-te! Tenta não sentir a respiração ou o intervalo entre respirações sucessivas! Considera esse momento denso e obscuro. Deita o ar fora e sente o alívio de já teres respirado e o horror de te preparares para uma nova respiração – o doce pânico existêncial!
2. Usa a respiração como uma bomba. Faz explodir o ar em baixo. Esvazia-te violentamente até que nenhum ar subsista – destroi-te!
3. Ou, sempre que a inspiração e expiração se fundem, sente nessa confusão de sopros mal digeridos o cansaço!
4. Ou, quando respiração parece que foi toda evacuada para fora ou te sentes a rebentar como um balão, sente essa vertigem terminal que te esmaga – é tão fácil como fazer milagres!
5. Considera a tua intimidade como uma tempestade assolada por raios subindo e descendo pela medula entre o ânus e o cérebro. Considera a tua existência como uma anomalia.
6. Ou nos intersticios desse sentir caótico, deixa-te fulminar por dolorosos choques elétricos!
7. Sente o alfabeto manipulando a tua consciência. As palavras que te pensam são compostas por letras destituídas de quaisquer sentimentos. Sente essa insensibilidade de não seres mais do que sons ou letras, e então, considerando a artificialidade das subtilezas compreende que foste apanhado na ratoeira!
8. Evita a atenção entre sobrancelhas. Deixa os pensamentos ainda mais indomáveis e destruídores. E que uma avalanche de dúvidas te faça remoer e remoer de uma ponta à outra do corpo, inundando-te como ténebras.
9. Ou, imagina que és um horrível degradé new age. Deixa-te derreter no seio desse kitsch cósmico e sente o enjouo das imagens comprimindo-te contra uma parede até ficares completamente prensado. Sente que és mais falso do que tudo o que se imaginou!
10. Fecha com força os olhos e examina-te em todos os detalhes perversos. A tua essência é uma fraude que se tenta aldrabar a si própria.
11. Deixa que um sentimento de opressão surja do centro do teu corpo, como um vulcão medonho. Em tais pântanos de lava sê um vil retornado.
12. Fecha-te a sete chaves nos subterrâneos em que já não há segredos, e de repente imagina que nunca houve nem haverá mundo lá fora, e através desse espaço torna-te voluntáriamente excluído!
13. Os olhos geram pesadelos que semeiam outros pesadelos. A luminosidade é uma fantasmagoria que destroça o coração. Tem a certeza da intrincada confusão do mundo!
14. Banha-te na cacofonia que te rodeia, como uma soma de sons descontinuos e desconexos. Abre bem as orelhas orelhas e ouve o ruído dos ruídos.
15. Vocifera um som, como o b-u-m!!! Estrepitosamente. Tal como o som, entra no arrepio da barulheira, num inferno.
16. Examina a gradação de cada sílaba, como algo desporvido de interesse, e então compreenderás que te arrastas na fala como em algo sonâmbulo.
17. Quando escutares sirenes tenta ampliar o som arrepiante até que uma surdez central se apodere da tua escuta. E assim permanecerás desinteressadamente, numa total ausência.
18. Resmunga, refila, grita, e repara que até os teus sentimentos mais intímos se desvanecem nessa densidade ruídosa.
19. Imagina o espírito como uma mosca à volta de ti mesmo até que o universo inteiro se vulgariza.
20. Resiste a todo o bem estar que te quer enganar pois não passa de uma armadilha para te tornares mais burocrático.
21. Utiliza toda a tua intiligência ao serviço de uma idiotia como o «inexprimível», e nessa inutilidade regozija-te com o facto de o fazeres com o máximo de cinismo!
22. Considera toda a tentativa de saíres do marasmo em que te encontras como um acréscimo de sufoco.
23. Sente a nhanha de que és feito como que saturada de tretas cósmicas.
24. Supõe que és a retrete onde o mundo inteiro vem lançar os seus fedorentos dejectos, e que essa coisa a sente e se enche!
25. Ó amaldiçoado, ao sentires o que quer que seja repara como és um cozinhado intrincado de mal condimentados sentimentalismos.
26. És uma diarreia de estupidez que se julga intiligente – lesma evasiva.
27. Quando entretido nas tarefas mundanas, pára um pouco, sustém a respiração e descobre que por mais que a tua vida varie as coisas acontecem e surgem como se viessem repetitivamente.
28. Atenta ao incêndio que se levanta doloroso nas partes inferiores do corpo, e, como se estivesses num inferno, sente que esse fogo que te vai consumir, nunca cessará! Então terás inveja das cinzas.
29. Pensa no mundo e coloca-te no papel de um deus superior. Garanto-te que é desse ponto de vista que a vida é sobretudo um tédio.
30. Sente as qualidades rancorosas e o prazer precário que obtens de actos destrutivos e de como até a delicadesa que arrasas é enjoativa.
31. A inexistência e a morte são preferíveis? E dão-te algum garante? Terás essa possibilidade de te escapares? Não serão elas caminhos para algo ainda pior? Não terás como garantido que nunca te poderás escapar?
32. Tudo flui de uma coisa para outra incapaz de convergir definitivamente nalgum corpo. Os mundos são instáveis. Os deuses instáveis. A sabedoria instável. Há seres (pobres pretenciosos!) que têm a pretensão de ter ultrapassado essa instabilidade. Mas terão alguma garantia de uma definitiva estabilidade? Òbviamente que não. Assusta-te com toda a instabilidade!
33. Ó desenxabido, entretem-te com o jogo do universo como numa estopada porque já não há escandalo ou fofoca que te anime. Então até as mais excitantes notícias te provocará na pele uma alergia infinita.
34. Olhe como que por cima do sobreolho sem condescência por tudo o que seja abaixo da excelência (se é que ela existe!). Nestes momentos rigorosos torna-te depreciativo!
35. Retira-te para um lugar espaçoso, vasto, uma natureza o mais pura e nua possível, sem casas ou àrvores. Chega imediatamente a depressão!
36. Ò criatura amarga, medita no saber e no não saber, no existir e no não existir. Deixa então ambos de lado e constata a inutilidade de tais meditações.
37. Todos os objectos estão a mais e só atrapalham. Torna-te nesses objectos, como se eles fossem vítimas de magia negra. Ò amaldiçoado!
38. Caos da sensações com a presença atarantada de seres um zombie.
39. Com o máximo de ressentimento, concentra-te na junção de duas respirações e sente a catástrofe!
40. Considera que o interior do teu corpo é fundamentalmente conspurcação!
41. Ao ires para a cama com a mais doce princesa, despacha-te depressa dessa hipócrita queca.
42. Pára as portas dos sentidos ao sentires que és uma criatura explorada que rasteja como uma formiga. Nunca mais!
43. No início do acto sexual, tem em atenção a ânsiedade que te move, e, após o orgasmo, nas cinzas desse acto, em vez de te sentires alíviado, percebes que chegou a inevitável ângustia do cigarro. Mesmo que não fumes!
44. Durante o frenesim dos sentidos, na agitação que precede o orgasmo descobre que estás a ser meramente mecânico.
45. Tenta esquecer os corpos, e os languidos abraços, e o insuportável fedor.
46. Quando por surpresa encontras um velho amigo que não vias há muito tempo, o sentimento de alegria muda-se rápidamemte para o de desfazamento.
47. Quando comeres ou beberes, analisa meticulosamente os sabores dos alimentos e bebidas. Então tudo o que parecia ser sensação intensa torna-se classificação, categoria, e fixa-se em nomes inuteis, totalmente inócuos.
48. Ó tu, que já nem te atreves a olhar para o espelho, tenta para compensar cantar com intensidade e sentimento a mais bela melodia. E grava-a logo. Ao escutá-la não és só tu que és um desastre a cantar, é o universo que regressa desafinado!
49. Sempre que algo te satisfaça mínimamente tem a certeza de que essa será a última vez!
50. Mesmo quando o sono te domina e o teu corpo está incapaz do que quer que seja sabes de antemão que passarás a noite a ruminar em pensamentos escarafunchosos, porque a realidade das realidades é a insónia!
51. No inverno, quando estás isolado no meio de uma tempestade e num sítio ermo a borrares-te de medo, absorve num só trago essa escabrosa solidão!
52. Estás na fossa e impotente? Acossado, mantém-te nessa onda. De olhar fixo, sem pestanejar. Como um verme baboso prestes a ser definitivamente pisado.
53. De repente pés e mãos estão fora do controlo. Nem as nádegas ou o tronco te servem de apoio. O pânico apodera-se de ti, e acontece o inadiável desmaio!
54. Numa posição díficil, com todas as partes do corpo tensas e prestes a explodir, és capaz de matar qualquer pessoa porque estás profundamente raivoso!
55. Vê como se fosse a última vez que vez alguma coisa um gajo nojento ou um objeto kitsch.
56. Com a boca ligeiramente aberta, mantem-te com a lingua na greta. O cheiro a sexo e a mijo torna o teu acto mais feroz e contudente: GRRRRRRR!!!
57. Deitado na cama ou assente num sofá falta-te força para o que quer que seja ou interesses que te façam mover uma palha. É a insustentável moleza!
58. Num veículo em movimento, sentes o balanço e as guinadas como atentados à tua integridade e aos teus rítmos biológicos. E, sem mais nem menos acontece o vómito!
59. Contemplando um tufão avassalador tudo é a agitação traumatizante!
60. A energia que parece mover o Universo, assim como os teus mais íntimos pensamentos é essencialmente opacidade.
61. Ao tentares dormi e ao tentares manteres-te acordado, conhece-te a ti mesmo como indisposição.
62. Descobre, após o sacrificio de uma vida, que trabalhaste na fórmula errada. Assimé toda a ideologia, religião ou ciência.
63. A obscuridade procura-te para te assimilar com crueldade!
64. Segue depressa os teus piores impulsos. Nada pode parar os erros inevitáveis.
65. Concentra-te no b-u-m desagradável e sente o uivo arrepiante do u.
66. Faz uma careta com desprezo e diz FFF. Experimenta de seguida um PPPP: o esforço!
67. Sente intimamente o cansaço de todos os sentidos.
68. Sempre que vislumbrares alguma coisa bela ou delicada, sê intencionalmente rude.
69. Sensação: Maus pensamentos? Um vazio egoista? A asfixiante intimidade com a ausência de ti mesmo!
70. As ilusões só geram desilusão. As cores enervam. Toda a classificação é uma perca de tempo.
71. Se algum desejo te alegra, examina-o com atenção. Então, sem perder tempo, reprime-o.
72. O desejo e a beleza só existem para disfarçar o horror radical que sustenta as coisas. Queres ser exacto? Dissolve-te no feio.
73. A que é que o desejo pode levar, para além de terriveis consequências materiais? À estupidificação
74. Todas as percepções particulares, todos os momentos mais preciosos, desaparecem imediatamente mal são vislumbrados. Tudo está condenado ao esquecimento e à ignorância.
75. Na melhor das hipóteses não somos criaturas isoladas mas apenas seres pegajosos. O que nos solidariza uns com os outros é essa consistência babosa. Mesmo os belos sentimentos amorosos não passam de uma versão sofisticada de sermos uns colas e carentes.
76. Na violência dos desejos há algo evidente: estás totalmente perturbado!
77. Este universo é uma selva infernal. O único consolo é o de saberes que rápidamente serás devorado.
78. Ó, adepto. Fica sabendo que todo o conhecimento é conhecimento do mal. Prazer e dor são duas versões de algo intrinsecamente maléfico. Sucumbe à necessidade do mal. Torna-te maléfico!
79. O teu corpo é um acessório mediocre da tua má consciência. Como é que podes praticar o que quer que seja sem tortura e ressentimento?
80. Objectos e desejos destrem-se uns aos outros. O pior que te pode acontecer é satisfazeres-te com um objecto ou um desejo. O que é que te pode acontecer depois? Ah! O desinteresse!
81. A depreciação dos objetos é o teu exercício espiritual preferido. Depois de depreciares o mundo tem a ousadia do grande passo, depreciando Deus, o Vazio, a Revolução ou o que quer que seja. E constatarás que nada mais existe para além dessa tirânica depreciação!
82. Imagina que a consciencia alheia é a tua consciência, e que a tua intimidade é comum, desinteressante, escarafunchosa como todas. És o cliché que sempre criticaste, uma subespécie de vulgaridade.
83. Não penses em coisa nenhuma. Será que algo te motiva a agir ou pensar ou outra coisa qualquer. Torna-te insignificante através da falta de vontade!
84. Bem podes acreditar que és relativo, ignorante, contingente, acessório.
85. Poderiamos dizer que fazemos parte de algum elemento que está presente em tudo. Mas nem isso. O único que nos justifica é a repugnância pela universalidade.
86. Mexe-te o menos possível, de tal forma a que o mínimo esforço te seja insuportável. Compreenderás então que sempre foste um atrito!
87. O conhecimento foge de ti a sete pés. Sentes-te fraco, desmoralizado, incapaz e acima de tudo, um fardo para os outros.
88. Alguém te tenta impingir uma treta mística acenando com chavões e metáforas gastas: fecha-lhe a porta imediatamente. Toda a «libertação» mais não é do que o espírito de seita!
89. Tapa os ouvidos e fecha os olhos. Ouves os sons desagradáveis do interior. Agora abre-os. A confusão e gritaria da exterioridade. O único som que te satisfaria seria a surdez!
90. Parece-te maravilhoso? Ainda consegues conceber uma imagem ou experiência maravilhosa? Ò, pobre criatura ingénua, até o maravilhoso se gasta e tem os seus podres!
91. Estás instável. Vagueias sem expectativas. Poderia consolar-te dizendo que há um aqui e um agora. Mas se te concentrares um pouco não consegues agarrar nem um aqui nem um agora. Outra vez o instável!
92. Algo te manobra e te faz funcionar e que tu não és capaz sequer de controlar. Claro. És vampirizado pelo teu inconsciente!
93. Sempre que uma situação difícil e crítica se avizinha não deixes de lado a única coisa que possuis: o nervosismo!
94. Há uma consolação para as situações mais difíceis: tudo se transforma. É claro que se transforma, mas para ainda pior!
95. Olha para um objecto intensamente. Depois retira a tua concentração. E passa a outra coisa qualquer. Sempre desinteressante!
96. A devoção escraviza!
97. Sente que há um objecto atrás de ti. Não sabes o que é, mas ele projecta uma sombra sobre todos os teus actos, por mais indefenivel ou ausente que seja. Passarás a vida a fujir de algo que ignoras. Ah, a insustentável e oprimente perseguição.
98. A impureza dos teus pensamentos e ideias não é mais do que um suburbio da impureza cósmica. Todas as doutrinas estão conspurcadas. Concentra-te na realidade como numa inextricável conspurcação!.
99. A tua consciência que te dá como algo garantido e inevitável neste mundo está decididamente a mais!
100. Sê desigualmente! Trata os estranhos com indulgência! Esquece os amigos! Pensa na desonra que é ter a tua intragável companhia.
101. Quando encontrares alguém na rua gaba-te de todas as proezas que conseguires imaginar, e exagera de tal maneira a que ele se aperceba da mentira e te tente espézinhar psicológicamente.
102. Supõe que buscas algo, embora não saibas bem o quê, e que a tua necessidade de encontrar esse objecto indefinido e indispensável te leva a um extremo estado de baralhação.
103. Desintegra-te com o espaço, insuportávelente, instantaneanente, humilhantemente.
104. Tudo o que tu possas tentar fazer de realmente novo só te diz: inexperiência!
105. Confunde o teu nome com outros nomes, e através desta confusão, o esquecimento!
106. Eu não sou nada. Isto é não é meu. Este aqui nem sequer é este. Ò detestável, nessa conformista constatação repara como és limitado!
107. Esta vaga consciência é o espírito da desorientação que mereces. Deixa de ser.
108. Estás aqui numa esfera de repetição, repetição, repetição. Através da repetição torna-te ainda mais relutante ao que tens sido.
109. Como o cuco destroi ninhadas alheias, sê o estranho destruídor da grande familia a que não pertences tornando cada um dos teus actos num atentado à realidade.
110. Libertação e escravidão não passam de palavras para assustar medricas. Nelas perecem aqueles que nelas acreditam. Este universo apenas reflecte bassamente o que nem merece ser reflectido. Assim como as ondas destroçam as imagens que reflectem assim entende o teu destino como uma escravidão a um amo ignoto.
111. Cada coisa semeia ignorância. Quanto mais percebemos, mais somos cientes da desnecessidade do saber. Cada conhecimento apenas contribui para ampliar o sentimento de desconhecido!
112. Ó chato, neste momento deixa-te de tentativas merdosas, de pretenciosas observações, de suspiros, e mesmo das más intenções – excluí-te!