Sunday, September 16, 2007
O LIVRO CINZENTO DE ZINGDONG
1. Não é uma criatura, mas algo malcriado.
2. Tem nomes a mais para uma forma de desistência.
3. Nomes que indicam como se indefenissem
4. Algo que rasteja nas palavras mas que prefere ficar aquém destas.
5. As palavras curtas tornam as jogadas mais rápidas.
6. Agarra as transições e os buracos negros entre as palavras e os silêncios.
7. Exprimir exactamente o que não nos apetecia exprimir.
8. Os conhecimentos pequenos esgueiram-se para debaixo dos grandes aproveitando-se maliciosamente das suas sombras.
9. Os argumentos éticos propiciam crimes oficiais.
10. O ego, assim como o que nos distingue dos demais, não pretende confundir-se com a vulgaridade da verdade. O que é mais nosso é uma fibrosa variação.
11. Recusa participar em equipas que não te singularizem. A tua singularidade é muitas vezes supremamente indistinta.
12. Entrar num estado entre a forma perfeita e cabotina e a moleza do informe.
13. Alcançar o que se quer formar no informe e o que não informa nas formas.
14. Uma aliança contra as semelhanças.
15. Não te podes comparar a nenhuma maneira, mas também não pedes para ser original.
16. Dissimulas, mas não tens nenhum segredo no buxo. É uma estratégia vital?
17. A natureza é mais estratégica do que essencial.
18. Uma falta de talento para a manipulção e algum faro para agarrar a ocasião.
19. A sensibilidade é, ao fim e ao cabo, a luxúria numa versão mais admissível.
20. O amor da sabedoria pode levar a overdoses liturgicas.
21. Porque é que treinas as tuas orelhas se acabas sempre por ser frito pela piedade?
22. Ter razão é engordar a presunção. A presunção dá-nos a possibilidade de chegar à condição de presunto.
23. As pessoas gostam de cortar fatias de prazer aos outros.
24. A musicalidade é pouco mais do que o talento combinatório armadilhado de sons: a especialidade canalha de dar milho aos melómanos.
25. O amor da sabedoria faz do sábio um actor enervante que ficaria melhor pendurado num talho.
26. O amor do conhecimento conduz à busca de facas e ao adiamento das fezes.
27. A confusão é o mundo mesmo quando este cai em si mesmo.
28. Os homens desonram o prazer repetidamente porque encontram um prazer mais fácil nos remorsos.
29. Que o jejum afaste das nossas unhas a unidade.
30. Quando te retiras da unidade, sobretudo a mais negramente interior, o que vem ter contigo é delicioso.
31. Mordiscas os opostos em todas as dentadas.
32. Os jogos de palavras fazem com que as palavras já não nos apanhem
33. As afirmações e negações convergem nas suas divergências e divergem nas suas convergências.
34. As coisas obscurecem naquilo que as ilumina.
35. A desordem é uma variante da variação tentacular que nos sedimenta.
36. As capacidades estão-se nas tintas para os erros de onde nasceram.
37. Pensamos para simular independência.
38. Gostamos de pendurar limpas semelhanças ao lado de porcas diferenças.
39. A recusa não é apenas uma a aceitação irónica, mas uma partida iconoclasta.
40. O funeral do sábio enterra a sua sabedoria.
41. A inação camufla-se de acção.
42. Determinadas habilidades transformam-nos em algo misterioso e ligeiro.
43. Não estudamos, mas farejamos. A sabedoria vem ter connosco como uma presa fácil. Chupamos-lhe o tutano em menos de um fósforo.
44. A sabedoria afina-se na sua refutação. A sabedoria refina-se na masturbação.
45. O acaso atrai muitas necessidades mas não se contenta com nenhuma.
46. Garantimos uma quietude com muito movimento. É a imobilidade que transforma a transformação?
47. A alegria é preferível à beatitude. Um sábio triste ou mais-ou-menos apático destila sabedoria de merda, por mais limpa que esta seja.
48. Não preciso de seguir um método porque são os métodos que me seguem.
49. Vejo as distinções como distrações. Ás vezes chegam a ser prometedoras.
50. Os pensamentos exercitam-se pelo prazer de se exercitarem. O que faz parte dos atributos irónicos do corpo.
51. A sesta afina o conhecimento das transições.
52. O grande vácuo, ou o supremo vazio é como um grande peido. Com todo o respeito! Mas na demiurgia sobram caganitas estelares e planetárias.
53. O mundo auto-organiza-se sem directivas superiores. É na identificação com esse vácuo peidológico que se dá o extase.
54. Limitado e ilimitado são casos extremos do entreaberto.
55. Há uma pretensão em não deixar pistas ou obras semelhante à do egocentrico Ling Chung polindo as suas odes. O tempo, o grande tempo, apagará todos os traços. Somos, mesmo mortos e desconhecidos, tremendamente interactivos.
56. É complexo, com demasiadas e contraditórias defenições.
57. Há quem procure a boa ou a má reputação. Mas a aparência não interessa, só a simpatia.
58. Amizade carismática. O carisma dos chefes é como as perucas.
59. Serás um dia autodestruído. Então já não será tarde.
60. A disciplina do desforço torna os esforços talentos ligeiros. Não te esforces para seres desforçado.
61. Longevidade é criatividade e curiosidade.
62. Não há um momento certo para parar. Nada fica acabado. A acção mantém-se no inacabado. Há recomeços que continuam os inacabamentos com outros inacabamentos.
63. Felizes interactores de multiplas acções que se cruzam.
64. A felicidade não nos encontra se a ficarmos aguardando ou se a procurarmos. É a treta de sempre. Acabamos por encontrá-la por acaso.
65. O que deve ser feito é o que não deve ser feito, sobretudo quando parece que é para ser feito.
66. O indeterminado como determinante provoca gargalhadas. Os produtos da pura indeterminação provocam bocejos.
67. Concretiza através do não-fazer, mesmo que isso tenhas que fazer alguma coisa.
68. Toda a perfeição é uma imperfeição amputada e simplificada.
69. Torna as proezas banais, quase imperceptíveis.
70. Se a arte for superflua o mundo fica equilibrado.
71. Vida fácil, morte retardada.
72. Mentes livre, pensamentos lubrificados.
73. A desonra torna os homens mais nobres mas as suas vidas mais marginais.
74. As virtudes são estereis, mas se forem bem diversificadas, fazem um excelente cozido.
75. Sinto uma certa nausea quando vejo a sabedoria a procurar atingir objectivos.
Friday, September 14, 2007
Livro das Ambulatórias Atribulações Atributivas
(1) A ciência está no número dos bens arrepiantes. Uma ciência é melhor que outra nem que seja só para fazer inveja.
(2) A ciência que trata da excitabilidade e do acalmamento é um panejamento mais fecundo dos afectos brutos e abruptos que se procuram polir em desenvolta arte.
(3) O conhecimento é um propósito da alma, de inquestionável utilidade para os arremessos retóricos e para a encenação de complexas autenticidades.
(4) A alma é a animalidade, o acto movente que dá caça a todos os aspectos e principios morredoros ou supostamente eternos.
(5) Diversos são os principios que dão trela a outros contentamentos e arreliamentos.
(6) O animal que na sua singularidade se universaliza quer-se um pouco de tudo e em um tudo um excelso nada. Ele é o que é, nem anterior nem posterior a qualquer natureza, mas algo que se entrega à devorante oferta do mundo. Ele é a atenção às desenvoltas intenções que no mundano ar se confutam.
(7) A acidentalidade forja os modos como encaramos os quês das coisas, quer através do que nelas lhes é acessório, quer nos afectos transicionais e nas circunstâncias com que damos de cara com elas.
(8) A forma exaltada com que atiramos com as nossas indagações levam as suspeitas sobre os quês a diversas pessoas, desembrulhando os assuntos em equilibradas defenições que se desejariam assombrosas.
(9) Em qualquer operação a que animadamente nos entregamos são indistintos os humores do corpo dos da alma, se bem que o corpo proceda como coordenado exército e alma goste de encenar as suas diletantes multiplicidades numa desejável diversificação, pois querer ser é procurar expandir-se nas singularizações das diversidades.
(10) As operações da alma querem-se limpidas nos seus procedimentos estilisticos e nas finalidades que desenrolam as intenções. É através de desejos precisos que o corpo as acolhe, e é numa ginástica coordenada entre os desejos da suposta alma e a exercitabilidade do corpo que se dá uma purificação essêncial para a persistência conjugal de ambos.
(11) O intelecto busca espaços nos quais se ancorar, tecendo e destecendo imagens. O espelho do intelecto é a florida imaginação. A intelecção pode ser a secagem das fontes, e como tal um espelho onde se reflectem fantasmas, imprecisões, neblusidades. Mas o intelecto rigoroso faz belos desenhos.
(12) As defenições procuram a excelência de um momento e a multiplicação das variantes, quer confirmativas, quer refutativas. O que é dado é o moldável, o philum, o que adere a esquemas e designios. Ou como dizia Antiphon o arrythmyon, a disponibilidade do não-esquematizado. Toda a esquematização está em potência, mas a potência não existe sem prática, sem «materialização». As formas engendram as formas, mas as formas que se contentam com a sua inércia só podem sonhar com a réplica.
(13) A naturalidade é a dupla interface entre as diversas reacções miméticas (simpatia, antipatia, paródia), as forças diagramáticas (e as sequências complexas que as geram) e o philum (o não-formatado aderente, a simpatia da matéria). A animação e a animalidade são a vertigem de uma demorada interacção. De certa forma, toda a geometria é um animal voraz.
(14) As explicações não são isentas nem de alegria nem de tristeza, por mais clássicas, engenhosas ou inexpressivas que pareçam. As explicações são geradas, têm um subsolo «patético», tendo sido tecidas num emaranhado de afectos.
(15) Os olhos do passado são predadores. Os renascimentos procuram vitímas em excitáveis rememoradores.
(...)
(44) As explicações são bestas formatadas por diagramas animados. O olhar caça o visível. A visão não é nem a afortunada desocultação (ocultante ou não) de uma natureza demasiado púdica nem uma pura e galhofeira aparência de uma literalidade irrepreênsível. A visão é uma selecção e uma caça, ou até mesmo uma intoxicação.
(45) O visivel distingue-se do ainda não visto menos como esgotamento de possibilidades e mais como uma encarnação personificadora, uma força metonímica que procura contagiar-se narrativamente noutras formas e visões. O caracter romanesco da realidade é a sua não-finalidade. A natureza do romance nega que o romanesco termine no livro. Cada livro é a sequela do que determinado livro deixou como propulsão metonímica. É menos a questão do aberto do que a do abrinte.
(46) Viver dissimula-se em vários modos: crescer, sentir, fingir, aperceber, criar, adorar, embriagar, ocultar, rir, chorar. É a inadaptação ao lugar que faz a intiligência. São as estratégias de simpatia ou de rejeição do lugar que determinam as nossas competências e incompetências.
(47) A alma incita o corpo quer à diferença quer à indeterminação. Põe-no a jogar em todas as posições – alerta-o para os contrataques e para os perigosos movimentos na rectaguarda.
(48) A animalidade é predominantemente voracidade, graça e toque.
(49) A alma gosta de se entregar aos espaços numa confutação amorosa – a intiligência é quase sempre uma intiligência de lugar e posição. Os seus méritos são miméticos e sequênciais.
(50) A alma usa uma série de personas para passar à acção: a deambulativa, a sentimentalona, a mimética e a intelectiva.
(51) Há nas plantas uma alma pública com erecções privadas.
(52) A conectividade entre todas as personas da alma é indispensável para aumentar as suas potências. Mesmo as zonas mais abstractas são corruptíveis. O intelecto só adquire um movimento perpétuo se se mover, sentir e establecer interfaces metamórficas com os espaços à disposição.
(53) Inclinamo-nos nos avatares da ciência, nas predações da alma – buscamos uma saúde mais exuberante para que seja transpirada pelo corpo.
(54) A acidentalidade é a vontade de actualização das essências. A criação de novos objectos encaminha transicionalmente a de determinadas essências. A natureza do canapé ou do sofá não é a mesma da cadeira, é uma gradação entre cadeira, cama e eventualmente outra coisa. A criação de novas espécies animais e vegetais supõe atributos acidentais que se tornam defenitivos. Será que se pode dizer o mesmo do mundo – entendê-lo como genérica acidentalidade é enunciar o que nele e na acidentalidade há de mais universal?
(55) Os actos das coisas são a sua inclinação substanciando-se.
(56) As capacidades são reconhecidas pela ingerência actuante. A função dos actos é actualizar os objectos nos objectos.
(57) A mais natural das operações é a de aprimoramento dos apetites, isto é, aumentar a exuberância das formas e entranhar-lhe uma apetência metamórfica – mantê-las numa tensão aberta para novas gestações, quer internas, quer externas. A ideia de perfeição é menos a de acabamento e mais a de processamento – work in progress. Espontaneidade que procura a divindade e a imortalidade nas extremidades do caduco.
(58) O corruptível é a desentificação e a acção desconcertada. A perca de identidade (mesmo sendo uma identidade multipla) de qualquer agente diminui as suas capacidades regeneradoras. Há agentes que sobrevivem perpetuando-se pela reprodutibilidade, por mais que sejam rápidamente corruptiveis. A reprodução no quase identico é a espécie.
(59) A ciência determina o seu rigor criando universais onde possa arrumar a confusão mundana.
(60) Os universais imprimem-se na alma como uma força diagramática que flutua com um determinado poder quer na enunciação do mundo quer na sua manipulação.
(61) A alma gostaria de ser mais autonoma nas suas andanças, mas o que a enriquece é a interface entre a sua autonomia volitiva e a vulnerabilidade perante as coisas e as ocasiões.
(62) A sensibilidade afina-se como progressão da sua combinatória interna e como digestão do acidental.
(63) Há uma sensibilidade genérica que é partilhável e comunicável e há uma sensibilidade mais particular e intransmissivel. A linguagem tenta traduzir o incomunicável das singularidades em termos de sensibilidade genérica.
(64) O sensibilidade genérica distribui-se em três pares modais: a elevação/rebaixamento, o repouso/movimento, a geometria/informe.
(65) Há nove sentidos: a vista, o ouvido, o odor, o tocar, o execrar, o sublimar, o sexuar, o provar, o regorgitar.
(66) A sensibilidade não se engana a si própria mas pode induzir a erros a sua intelecção e o modo de lidar com os seus problemas.
(67) A cor é a visibilidade inconstante, propriedade das complexidades da luz e da refracção do momento. A côr é o antegosto do paraíso.
(68) A luz é a substância que constitui todos os corpos. A tendencia da luz para a inércia é o obscurecimento. A luz continua a banhar tudo, mesmo na sua lentidão.
(69) Dois corpos não podem ocupar em simultaneo o mesmo lugar, mas podem cohabitar determinadas àreas.
(70) A iluminação não se produz de maneira sucessiva e no tempo, mas produz-se no momento.
(71) O obscurecimento é uma elisão da luz. As trevas estão grávidas de iluminações.
(72) A cor é a luz dividida, dispersa. As cores, na sua intensidade remetem para a intensidade da luz – quer na sua insuportável magnitude, quer no doce clamor com que a luz se dissimula nas ténebras.
(73) A sensibilidade procura a intensidade para saír fora de si. O sentido do fora não é enunciável nem inteligível – é o extase.
(74) O som é resultante da vib-ratio original, de um tremendo clamor genésico, cuja ressonancia e ecoamento parece despontar na vontade dos objectos e os animais persistirem em esfregar objectos sonoros com ou sem violência.
(75) O eco é um som que continua em diminuendo parte de outro som. Temos que pensar que o mundo é a variação em pianíssimo de sucessivos ecos, já de si variações de um chamamento temível que roça com o mundo – variações de variações em busca de novas variações.
(76) A voz é um som que se procurou desembaraçar de um corpo.
(77) A voz é o que se solta através do ar das nossas zonas vocais na garganta destilando um prazer que se compraz em jogos e inflexões musicais que procuram emocionar e através da emoção significar em outros.
(78) Nenhuma coisa consegue ser alheia às vozes, mesmo que seja surda.
(79) As línguas empurram os ecos que vegetam musicalmente no mundo para operações de significação particular ou para operações sentimentais. Toda a lingua é babel no seu enfase de particularizar, de preencher os requesitos e particularidades de espaços e momentos.
(80) O homem compraz-se em sentir imperfeitamente – muitos dos seus sentidos são inferiores aos de outros animais, mas não a forma como recicla e reelabora o que lhe é dado por esses sentidos.
(81) Há três variedades de causas: a causa esquemática, a causa estratégica e causa directa. A primeira actua sobre as determinações morfológicas, a segunda establece sequências de oportunidade, a terceira entra de rompante na matéria e é por isso a mais eristica de todas e a mais observável.
(82) A estratégia implica a duplicidade de procurar um fim em parte desejado, mas também a gestão do adiar esse fim, uma vez que a finalidade alcançada implica a morte da estratégia. A graça é a estratégia para além do fim – como o messianismo para além do messias.
(83) O ordem da fala alimenta-se da desordem das impressões que em seu redor flutuam. Por isso os mestres de retórica buscam locais ordenados para alicerçar os seus discursos improvisados.
(84) A alma vegeta nas suas apetências: consumidora, aumentativa, regenerativa e reprodutiva.
(85) As bocas dos animais são como famintas raízes que tentam devorar tudo que é apetecível ao olhar.
(86) A combustão das coisas dá-nos a ideia de que há um limite de combustiveis apesar da imagem do fogo nos proporcionar a ideia do infinito, como coisa que se alastra incontroladamente.
(87) A natureza coloca limites que procura transgredir. O ilimitado não existe senão como hipótese de alastramento dos limites.
(88) A assimilação digestiva apropria o dissemelhente que dilui as suas qualidades nas qualidades do devorador. A predação tem a sua justificação morfológica – toda a forma quer engulir outras formas.
(89) A sobrevivência depende da manducação e da assimilação de multiplas dissemelhanças.
(90) Tudo se gera de si-mesmo contra si-mesmo, conservando-se graças ao nada.
(91) À partida, o predador e a presa são dissimilares, no fim são semelhantes.
(92) As criaturas tentam exacerbar a sua potência marcando o espaço e devorando outras formas, ou pelo contrário, deixam-se devorar de forma a pertencerem de um modo mais completo à matéria. A potência exerce-se quer como poder dentro de um espaço circunscrito, quer como exibição para outros espaços que não controla.
(98) Homem é o mais excentrico entre todas a bestas.
(99) São mais expeditas as criaturas cujos corpos são elásticos.
(100) Sem humidade e humildade nada pode ser provado. Toda a prova implica humilhação.
(101) Tocamos nos outros corpos como se uma ligeira palpitação lhes proporcionasse um incendio neurológico. A pele e a carne parecem dispositivos elétricos em que cada ponto contagia o resto do corpo.
(102) Os conceitos tentam fazer passar por palavras determinados estados de sensibilidade extrema, secando-lhes as ambiguidades.
(103) Qualquer sentido é a receptividade a cadeias ambulatórias de outros sentidos que se dão quer como combinados clichés verbais quer como dados projectados de imprecisas experiências.
(104) Uma sensibilidade forte corrompe os sentidos mais fraudulentos.
(105) Os sentidos engendram-se nas pregas da imaginação.
(106) O motor que faz mover o mundo é nú.
(107) O sentido comum é o sentido partilhável e esquematizável que permite as incontornáveis variações dos sentidos pessoais – o sentido comum é ,à partida, biológico e político.
(108) O pensamento tenta absolver os homens da sua violência – ou não passará de um intoxicante ainda mais terrivel que o sabor do sangue?
(109) Nunca nos limpamos suficientemente quer do erro quer da ignorância, por mais que nos simplifiquemos nos fundamentos ou nos eduquemos na etiqueta de ciências plausíveis. A nossa perfeição é tanto mais perfeita na admissão de desavindas ignorâncias e de imperfeitas hipóteses do que na maningância de uma snob excelência.
(110) Pensar melhor, um pouco melhor.
(142) A inteligência procura segurar-se. Uma leve ironia não a deixa atirar-se ao abismo.
(143) Cada coisa tem a sua forma deformante e a sua materialidade com ecos imateriais.
(144) A coisidade de um objecto é mais um combustível que anima a já de si animada alma.
(145) O intelecto procura demonstrar que é simples como garantia da autenticidade, mas não passa de um composto, uma conectiva máquina de filtrar estados de sensibilidade e de confusão cognitiva.
(146) O intelecto possível é determinado pelo modos como arruma, pelas prateleiras cognitivas que se pretendem virgens mas que já foram desfloradas ainda antes de nascerem.
(147) O nosso intelecto procura entender-se a si mesmo, mas não há especulação que espelhe efectivamente. O intelecto é uma voracidade esquemática enamorada dos axiomas e teoremas que propõe.
(148) A matéria é inseparável da suposta imaterialidade. Inseparável quer dizer que são o mesmo ser.
(149) A natureza dispersa-se em afãs produtivos, reprodutivos e destrutivos. Nós somos as criaturas que procuram ter acesso aos mais delicados mecanismos dessa engrenagem. A inteligência é a porta aberta para uma compreensão intensa. A inteligência está com a luz, solicitando a competência farmaceutica das cores. Entenderás a potência como o paradisiaco que não cessa de ser em acto.
(150) O pensamento que se revela na arte da vida é mais nobre do que aquele que se deixa subjugar por potências alheias. O pensamento nobre, e a arte nobre enobrecem a vida.
(151) O intelecto é mortal mas procura perpétuar-se recorrendo a multiplos registos. Não podemos confundir os registos com o intelecto.
(152) O intelecto opera com termos polposos – têm demasiados braços para agarrar as coisas.
(153) Outro dos atributos do intelecto é o de pôr em acção as diversas analogias e relações como se fossem tribos de afectos.
(160) Todo ser é sensível por mais que seja filtrado pelas comédias do inteligível.
(161) A alma é, de certa maneira, a implexação do nada e a implicação rizomática de todas as coisas num complot ontológico.
(162) As ciências interagem umas sobre as outras como linguagens transgredindo as fronteiras. Nenhuma ciência se traduz completamente noutra.
(163) Não é a espécie (no sentido «escolástico») que designa a pedra que está na alma, mas a velocidade de um saber que permite denominar a pedra como pedra reconhecível. A alma é uma velocidade que é sensivel a determinadas redes de convenções.
(164) A mão é o orgão que se compraz em manipular os outros orgãos.
(165) O intelecto organiza, desorganiza e reorganiza as espécies de acordo com as velocidades da alma.
(166) O apetite, a fome e a gula são os pais da vontade – esta é uma extensão caprichosa da gestão da fome. A disciplina da inteligência surge muitas vezes como disciplina de rejeição do apetite – ascese; isto é, passar fome. Da mesma forma a inteligência é a superabundância resultante de uma ascese. A inteligência transforma a vontade, as capacidades perceptivas e até a sensibilidade. Também se deleita na dificil gestão dos humores, sobretudo da ira e da concupiscência.
(167) Tal como as sensações e percepções geram equivocos também os caminhos da consciência podem levar a erros, por mais seguros que sejam os métodos utilizados.
(168) A natureza nada faz impunemente – cria-nos necessidades caprichosas e procura-nos viciar na superabundância. Mas em geral a gestão do mundo, nas suas inumeras localidades, parece quase perfeita.
(169) Procuramos principios como nucleos estratégicos a partir dos quais criamos redes de tráfico de sentido que nos dão acesso à variedade e às regularidades do mundo.
(170) O desejo que nos empurra para as coisas é ético, não no sentido de um bem «moral» que se opõe ao mal, mas no sentido de intoxicação voluntária que abre mais diferenças nas diferenças já assimiladas.
(171) Falar de animalidade é falar de mobilidade, de criaturas vocacionadas para a acção. E o que é que as faz mover? São motores vários dos quais o mais evidente é o coração.
(172) O movimento é dado ao animal. Ele dispensa-o em actividades de manutenção. Mas o homem tem apetites que se estendem bem para lá das suas necessidades ou da sua segurança. O homem explora o movimento nos limites da sua própria movimentação. Por isso a dança é a metáfora de todas as artes, movimento exploratório por excelência, na apetência do corpo pelo espaço em todas as variantes posicionais e ritmícas.
(173) A alma começa por ser vegetal, como reacção à relativa estabilidade do mineral. A animalidade é já um estado de radical liberdade quer perante a formalidade grosseira do mineral e o limitado nomadismo do vegetal.
(174) É por necessidade que qualquer animal possui uma voracidade semiológica – é o que o distingue do in-animal.
(175) Nenhuma animalidade é pura ou simples. É antes contaminada, conspurcada e complexa.
(176) Os animais apetecem-se uns aos outros através do gostar (e degustar) e do tocar – os afectos mais imediatos expressam-se predominantemente nestes dois sentidos. Os outros sentidos desenvolvem o lúdico, o belo, o conforto e a tranquilidade.
(177) Ver é uma promiscuidade. O olhar acolhe as coisas como uma oferenda que será devorada pelo fogo dos seus hábitos perceptivos.
(178) Nenhum sentido, por mais universal e abstracto que seja consegue ausentar radicalmente a animalidade que o engendrou.
(179) A sensibilidade sublime procura alastrar o sentido para lá do sentido.
(180) O excesso de tangíbilidade corrompe a excelência no animal. Deveriamos defender o direito ao pudor como algo divino.
(181) Os animais possuem línguas para oscular nos outros os apetitosos significantes. Comunicar é partilhar as mesmas iguarias semanticas.
tau-tau (501-534)
501. Só o pensamento que dansa se consegue elevar acima da verdade e da mentira.
502. A natureza prefera as curvas às rectas. Foi para distinguir a «humanidade» da natureza que se construiram piramides e zigurates. Um sublime non-sense.
503. A lógica da arquitectura é uma lógica da morte. A casa prepara o túmulo.
504. Os homens não foram feitos para estar fechados em casa.
505. A espiral pode ser disfarçada pelas geometrias derivadas do número de ouro. Mas esta substituição não passa de uma superstição.
506. Há no entanto construções que são feitas para que a natureza se torne mais aprazível, onde o ar entra e onde o céu se torna mais azul. Que lindo!
507. O culto dos mortos no Egipto é o oposto da obcessão com o porlongamento da vida dos chineses.
508. A natureza é maneirista. Faz contrastar o sofisticado com o rústico, o orgânico com o inorgânico, a decadência com a emergência.
509. A natureza é sósia do homem.
510. As necessidades provocam o aumento. O exercicio adia a decadência. A sobreabundância convida ao carnavalesco.
511. O sábio alterna o comportamento carnavalesco com um falso puritanismo. Apenas aceita a pureza como uma preparação para o deboche.
512. É do prazer no trabalho que se obtêm recompensas. Toda a recompensa extra só serve para amaciar a auto-estima.
513. Benefeciar o mundo é benefeciar do mundo.
514. A arte é irresponsável perante os povos, mas a arte é a resposta ao mundo.
515. Os povos são solidários. Forjam laços que apenas servem para conservar o status quo. A arte serve para liquídar. A arte é como a àgua, endurece, torna-se liquída e evapora com bastante facilidade.
516. Os povos são governados com a força das armas e do dinheiro. O artista governa o mundo com a fraquesa da arte e com a aderência ao clima.
517. A arte responde à arte. As coisas inuteis têm uma responsabilidade perante a inutilidade que as precede. Esse dever inalienável entra no coração da produção artistíca.
518. Para alguns a arte só se passa nas obras que o artista produz. Para o sábio o importante na arte é a vida que não está nelas.
519. Com òdio e ressentimento não se fazem obras de arte mas apenas maus cartoons. Nada disso remanesce.
520. A arte é as dissonâncias da reconciliação. Uma harmonia que exclua as dissonâncias e as impurezas tem hábitos assassinos. A arte procura o impuro. Com esse impuro contaminará o mundo através de epidemias benéficas.
521. O tesão de uma nação é o prazer da punição. O sábio, pelo contrário, nem sequer precisa de perdoar, ‘porque no Tau-Tau não há culpas ou delitos.
522. O sábio não procura forjar imagens utópicas, sejam atarracadas ou gloriosas. Quem se agarra a uma utopia agarra-se a uma mediocridade. O mundo, com tudo o que é tortuoso, inclemente e indignante, é mais fascinante que a mais perfeita das Utopias.
523. As nações devem seguir o hálito do mundo. As nações devem aceitar a sua natural dissolução. As nações necessitam mais da interacção de todos os seres com todos os outros seres do que disputas de faca e algidar por bandeiras foleiras, linguas, religiões ou pedacinhos de terra.
524. Não confio na honestidade de um povo que se veste discretamente. Prefiro confiar na desonestidade de um povo que se vista com exuberância.
525. A retórica é mais exacta do que qualquer verdade. A verdade é uma pretensão, a retórica uma mecânica.
526. Uma relação amorosa sem conflitos não sobrevive durante muito tempo.
527. A concorrência optimiza.
528. O sábio conhece os seus limites. Os seus progressos são lentos e graduais. Os seus retrocessos são frequentes e normais.
529. Para o sábio a qualidade procura a diversidade.
530. Enquanto todos dormem o sábio pensa. Os efeitos dos pensamentos do sábio entram nos sonhos dos homens. Quando estes acordam há no ar uma estranha sabedoria.
531. A prudência precisa de irreverência e disputa.
532. A vida precisa mais de satisfação do que sentido. A pequena satisfação quer sempre uma satisfação mais intensa.
533. É a dor assim tão imprescindível? Não. É a seriedade garante de alguma coisa concreta? Não!
534. Haverá melhor benefício do que o extâse?
tau-tau (451-500)
451. O problemático parece insípido, mas é como a bola de neve.
452. Multiplica-te aos poucos.
453. O retorno do amor tem òdio adiado à mistura.
454. Quem faz o exame de si-mesmo com rigor não tem boa nota.
455. A dificuldade ilumina o futuro.
456. A mentira é um bom começo para algo que não tem fim
457. O que é distante fora é fácil de antecipar dentro.
458. Não é com indiferença que quebrarás o gelo.
459. São as coisas mais pequenas que se movem com maior velocidade.
460. É mais provável o tiro saír pela culatra do que a culatra pelo tiro.
461. Negoceia dentro do possivel. Quanto mais cederes mais acessos terás.
462. Cria a melhor organização a partir da pior das confusões.
463. Agir é extremar.
464. É necessário enfrentar o declínio agarrando a besta pelo rabo mas nunca pelos cornos.
465. O cio faz com que nem tudo seja um falhanço.
466. Paradoxo: o sábio deseja não ter desejos.
467. O que é que se pode dar aos povos que não seja algo a mais?
468. A natureza acaba sempre por interferir em coisas que não lhe parecem dizer respeito.
469. Diminuir os conhecimentos é retirar vantagens. Uma nação governável e estupidificada será uma boa presa para uma nação astuta e conhecedora.
470. Se os conhecimentos destrõe nações, o sábio dará conhecimentos para que as nações sejam destruídas. O mundo só será razoável quando todas as nações e os nacionalismos forem suprimidos pelos factos. Na natureza não há nações.
471. A história foi inventada para testemunhar os momentos críticos, não para exaltar vitórias. A história perlonga a memória e faz com que esta co-habite com a natureza. A história dá a entender, mas não pode compreender. A sequência dos acontecimentos é misteriosa.
472. Nenhum povo deve dominar outro povo. O melhor que pode acontecer aos povos é misturarem-se.
473. Nunca sigas a vox populi.
474. Aquilo que o sábio quiz significar adquire precisão a partir do momento em que ele refutou aquilo que disse. Os significados só são vivos em função das circunstâncias. As circunstâncias são ambiguas. Só passadas as circunstâncias é que se começa a entender um pouco dessas circunstâncias.
475. Usar o amor como uma arma é contraproducente.
476. A frieza no combate é uma vantagem. A frieza fora do combate é uma desvantagem. O que é que é combate? O que é que não é combate?
477. O melhor ataque é a surpresa.
478. Faz com que o inimigo se sobrestime.
479. Um homem pode executar as coisas sem as compreender. Há quem diga que isso é que é místico.
480. O mal-entendido é uma boa parte da comunicação. Mas nem tudo é mal-entendido. O que não é mal-entendido será a má parte da comunicação?
481. O coração do sábio em nada difere do do homem comum. As suas palavras parecem levianas, mas cortam como laser.
482. O sábio é um expert na ignorância.
483. A subtileza por vezes confunde-se com a ignorância.
484. A doença consegue tornar o sábio ainda mais saudável.
485. Quando a economia arrefece os povos tremem.
486. Aproveita as oportunidades com elegância.
487. Por vezes o destino favorece as pessoas erradas.
488. A rejeição pode ser uma vantagem irónica.
489. O destino é uma má resposta para explicar coisas estupidas.
490. O destino é como o tapete estendido pelo assassino.
491. É preferível improvisar a planear. Mas há que ser bom a improvisar.
492. As mãos do destino estão velhas e gastas. Os seus dedos só servem para apertar gargantas.
493. Os povos procuram nos seus líderes os carrascos que eles não têm coragem de ser.
494. Na tirania a mecânica do poder torna-se mais evidente.
495. Interferir com a não-interência é muito diferente de não interferir.
496. A partir do momento em que estipulas regras de conduta quererás imediatamente fugir delas. Conduz-te como se tivesses regras mas não as tendo.
497. A disciplina é a raíz da liberdade. A liberdade sem disciplina leva à nausea.
498. A novidade é frágil, fraca, quase imperceptível. No ínicio as coisas são moles e flexíveis. No ocaso secas, perras e ressequidas. A estatuificação é a morte. A morte é o status e o estado.
499. Doce, flexível, alegre, terno, vulnerável, receptivo, afectivo. São estas as qualidades do sábio. Não será difícil enumerar os defeitos do idiota.
500. As verdades, porque são inflexíveis, morrem depressa.
tau-tau (401-450)
401. É na violência e no caos que os homens se revelam na sua indignante plenitude. A prudência, nesta situação, de pouco serve. O desespero e as necessidades mais básicas e mais vis são as normas.
402. Toda a guerra é um crime. Nenhum guerreiro está isento de crimes de guerra.
403. A paz e a civilização escondem as evidências ferozes da guerra e sublimam-nas nas instituições.
404. A arte é a alternativa à guerra.
405. É certo que a arte se torna, mais cedo ou mais tarde, o ornamento das instituições e a fachada de algo maligno.
406. A ingenuidade da arte disfarça a crueldade e o cinismo dos governos. Por isso os poderes não são indiferentes à arte.
407. O luxo é mais do que um acto de valorização. A delicadeza do luxo pressupõe uma hiperssensibilidade.
408. O estado emocional do sábio não é o espelho do estado das coisas.
409. A artephysis não se resigna com facilidade à sua violência.
410. O direito ao prazer é mais consequente do que o direito à felicidade.
411. Uma linha tortuosa é melhor solução do que uma linha recta.
412. Se queres saír depressa de casa, salta pela janela.
413. Um povo honesto não é feliz.
414. A sedução faz mais milagres que a bondade.
415. Quando uma nação construir os seus hábitos suprimindo o prazer poderá viver tranquila, como se estivesse espartilhada, mas nunca viverá contente.
416. O sábio é firme na sua flexibilidade.
417. Perante o fanatismo o sábio é inflexível.
418. Governa o mundo inteiro como se assasses sardinhas. Mas governa a tua casa como se cozesses um pargo.
419. Há sempre um caminho fluido no meio do atrito.
420. A grande força não faz demonstrações de força.
421. A exuberância só faz sentido para enganar o inimigo.
422. Quem tem lata procura mais oportunidades.
423. O sábio não está enraízado na terra, é a terra que se enraíza nele.
424. Devemos procurar ter influência enquanto palitamos os dentes.
425. Andar de uniforme é ter já dois palmos dentro da morte.
426. O Tau-Tau não está na ponta das baionetas, mas na ponta da lingua.
427. A emoção é a locomotiva da intiligência.
428. Há emoções que são como feras e estão prontas a devorar-nos.
429. O sábio esquece o sublime. O sublime não passa de um mau sucedâneo do Tau-Tau.
430. As emoções quando se tornam banais geram violentas emoções colaterais.
431. As melhores relações entre estados são as mais frescas.
432. Os pactos antigos sabem a hipocrisia. São como a velha viuva tentando seduzir o asceta senil.
433. Quando as coisas estão tenras são mais submissas.
434. A vontade dos grandes submete-se à indiferença do sábio.
435. É preferível estar no centro de um pequeno país do que no suburbio de um grande.
436. Divisa do mestre: a elasticidade na elasticidade.
437. O que governa a vontade é um desejo masoquista de submissão à natureza.
438. A nossa única finalidade é evadirmo-nos de todas as finalidades.
439. O Tau-Tau desinteressa-se pelas origens. Nem sequer é origem de origem. Não é ser nem não-ser. É Não-não-ser.
440. O É de que fala Parménides foi suficientemente refutado por Górgias. As afirmações de Górgias não se destinavam a provar o não-É, mas a lançar uma suspeita sobre a comunicabilidade e a lógica.
441. O Não-não-é é como a doxa: é multiplo, equivocamente comunicável, divisivel e ilusório.
442. Há algo entre a emergência e a aniquilação, entre o ser e o nada. É isso que é a natureza e o Tau-Tau.
443. Como é que alguém se pode refugiar e consolar com o Tau-Tau? Se fosse ser seria indestrutivel. Se fosse Nada seria igualmente indestrutível. Ora o Tau-Tau é criação e destruição simultaneamente. Nem ser nem nada.
444. O Tau-Tau não procura respeito ou admiração.
445. As convenções só são interessantes como plantas. Há convenções mais e menos belas. Podemos tirar consequências de um juízo estético? Talvez.
446. Se procuras o Tau-Tau não o encontrarás. É quando foges que o encontras. Mas não procures fugir para o encontrar.
447. O Tau-Tau joga às escondidas e no entanto não há nada mais omnipresente.
448. Tau-Tau? Tchau-Tchau!
449. Trata as dificuldades com ironia. Encara a não-acção como a dificuldade suprema.
450. A facilidade com que o dificil se torna fácil é identico à capacidade de o fácil assumir proporções trágicas.
tau-tau (351-400)
351. Na ingenuidade o mundo surge encantado. A lucidez é o estado critíco de decepção.
352. Há quem diga que conquistar o mundo é não mexer uma palha. O sábio preferer mexer umas quantas palhas para não ter a responsabilidade de ter um mundo conquistado nas mãos.
353. Para ser franco, o mundo é inconquistável. A conquista é uma alegoria das atribulações e desordens em que o mundo se mete.
354. O sábio tem dificuldade em distinguir-se das restantes coisas. O que não quer dizer que ele seja indistinto. O que ele é, é portador da indistinção.
355. As necessidades dos povos não são as suas. Será que os povos deveriam comportar-se como o sábio? Ou isso seria a suprema insensatez?
356. O sábio confia no acessório, no supérfluo. Para ele há mais verdade nas mentiras das fábulas do que nas verdades da ciência.
357. É uma banalidade, mas vida e morte são indissociáveis. O sábio procura porlongar a sua vida como se esticasse a sua morte. A morte precede a vida, como um tempo desmesurado e sem tempo.
358. A morte é a substância dos sonhos. Nos sonhos os teus antepassados procuram-te. A semelhança do sonho com a morte é temível.
359. Nada nos garante que a morte seja morte. Nada nos garante que os nossos limites sejam apenas estes limites. Será que participamos em algo maior ou menor? Será que somos participantes em nada?
360. «Quanto tempo estaremos no tempo?». O que é que é estar fora do tempo?
361. Para alguns filósofos há uma assimetria radical entre a morte e a vida. A vida é a excepção, a morte a norma. A morte e a vida não seriam duas faces da mesma moeda, porque a vida seria pouco mais que um ponto num oceano de morte.
362. A morte nada redime. As poucas vezes que a morte se transforma em vida nada traz de reconfortante.
363. A morte é assexuada. O assexuado precede toda a sexuação. É a sexuação que torna a vida mais plena.
364. O Tau-Tau não é o recuo à morte mas o inexplicável da vida, quer na doçura quer na violência.
365. A ternura é um exercicio espiritual.
366. O repouso existe como preparação do frenesim.
367. Comparamos o amor a algo que nos satisfaça como a teta materna: uma satisfação absoluta, embora circunstâncial.
368. Quem exige é porque não sabe dar.
369. A dádiva é a negação da reciprocidade.
370. O altruísta é egoísta nos meandros da consciência. O sábio é altruísta como se procurasse denegrir-se. Não encontra nenhum júbilo em ajudar os outros. Fá-lo como se nunca tivesse estado em falta.
371. Os deveres da natureza para connosco são muito superiores a qualquer dívida que tenhamos para com ela.
372. O sábio é aquele que acumula dádivas futuras. A grande arte é a dádiva de uma alegria estonteante.
373. Toda a legitimidade é indesejável. A natureza excepcional da natureza viva leva-nos a encará-la menos como lei e mais como delito. O inorgânico é completamente amoral. As leis foram criadas para nos defenderen de algumas potêncialidades crueis da natureza.
374. O descontrole, a desdomesticação, etc. Tudo isto nos leva a algo bem distinto do mito do bom selvagem. Nós não queremos tornarmo-nos mais naturais. Nós somos excessivamente naturais, mesmo nas coisas mais sofisticadas e culturais. O que queremos é desfazer esta oposição entre cultura e natureza.
375. O inorgânico não ama.
376. Suspender o juízo? Surpreender o juízo? Reservamos os nossos julgamentos porque os acontecimentos são delicados, mas sobretudo procuramos falar ao lado, destilando todo o veneno possível, inutilmente.
377. Esse tipo de conversa natural, burlesca, carnavalesca, auto-denegridora, esclarece em parte o turbilhão que nos atravessa. É uma conversa à qual se deve dar atenção. É a tagarelice que permite o pudor.
378. Prefere o detalhe a Deus. Prefere a exactidão à perfeição.
379. Pensa com tacto.
380. A honestidade acaba sempre por ser a corruptora.
381. Desvia-te da estrada principal, só encontrarás nela gente simplificada.
382. Quem sabe não sabe lá muito bem.
383. Os paradoxos são fáceis de enunciar. São uma forma electrizada de pôr algumas palavras a borbulhar.
384. Falar é uma necessidade canora.
385. Quem procura o silêncio sufoca o cantor.
386. A aproximação à natureza é feita de um modo musical: com as orelhas e com a voz.
387. A harmonia é uma designação musical. A noção de ruído é do dominio da escuta. Todos os sons se buscam. Não há não-harmonia.
388. Se a harmonia é apenas um modo simplificado dos sons rimarem então o sábio ama as calamidades ruidosas.
389. O silêncio não cala. A fala não «fala». Como se explica esta tagarelice?
390. É menos importante o que se diz do que o como se diz.
391. O sábio está menos preocupado com a meia duzia de palavras que é capaz de combinar de modo a que elas penetrem nos adeptos, e mais preocupado com o modo como elas vão ser saboreadas. O contexto físico e emocional é mais importante que os espartilhos da gramática.
392. Ao fim de algumas tiradas como estas a sabedoria é uma maçada.
393. Dizer que nada afecta o sábio é pura demagogia. O sábio é afectado mas com muito mais ligeireza. Essa menor afectação do sábio deve-se ao facto dele estar repleto de afectos. Quanto mais afectos dá, mais deles se enche. Os carentes são os incapazes de generosidade.
394. Sê humido como a terra e sêco como o céu.
395. A imparcialidade não é possivel num governante.
396. A inocência não assenta num governante. Um governante é um culpado voluntário. Ou uma piada de mau-gosto?
397. À luz do Tau-Tau somos todos ingénuos. A ingenuidade é o que nos é comum e o que nos diferencia.
398. A ingenuidade é a genialidade.
399. Na guerra a traição é a melhor das intenções. Sem cinismo as derrotas estão asseguradas.
400. Se queres manter a candura durante uma guerra foge o mais depressa possível.
tau-tau (301-350)
301. Ao mestre faltam objectivos precisos. Ele não olha para o alvo, mas para tudo o que está à volta do alvo. O alvo é o inevitável.
302. Os falhanços do sábio são os sucessos das civilizações.
303. Todas as obras de arte são fracassos, sobretudo as mais interessantes. É isso que as torna imprescindíveis.
304. A incompletude faz sobressair a sofisticação. Quando uma civilização atinge a perfeição vira-se para a variedade extra-canónica e para as erupções do tosco. A sprezzatura dos maneiristas em pouco difere do wu wei dos taoístas.
305. A maior beleza parecerá frouxa.
306. A beleza compulsiva parecerá demente.
307. A beleza é o styling da sexualidade.
308. A arte mais complexa menospreza a significação literal e as esmeradas intencionalidades.
309. O sentido em arte é uma ratoeira para imbecis.
310. A perfeição é um ideal de tipos carentes que querem continuar carentes.
311. Na cama a perfeição não existe.
312. Pericia, intuição, improvisação, reciprocidade: sem estes elementos o sexo é estafado.
313. O orgasmo é a promessa de um extase muito superior. A beleza é apenas a promessa de um orgasmo.
314. O sublime exprime-se naturalmente nas morfologias da sexualidade.
315. O sublime de tipo chinês procura acentuar as referências post-orgásticas, isto é, a descompressão.
316. O sublime tal como foi forjado pelo vucabulário filosófico do ocidente não é distinto da mais crua sedução. Há nele algo de operático, de enfático. Percebemos melhor Kant escutando o Don Giovanni. Caspar Frederich é um contemporâneo de Schopenhauer que procura antecipadamente a música insipida de Wagner.
317. A forma vem simples. Depois busca a composição e a perfeição. Então quererá libertar-se do que obteve. Procurará dobras e convulsões. Finalmente agradar-lhe-ão as nuvens e o nada.
318. Depois do nada a forma regressa revigorada. Tal como o sexo.
319. Ao aceitares o mundo ele abre-se como uma fruta madura.
320. O desejo semeia. É a limitação que colhes. É na aceitação que desfrutas.
321. A concordia é o que sobra à discórdia. A discórdia é o que é ensinado. A concórdia o aprendido.
322. Torna-te o professor que constantemente se supera.
323. O improvável é a fera.
324. O sonho é o que restringe.
325. O subtil é mais forte que o perentório. A desconversa é mais interessante que a persuasão.
326. O que não se move opera no mundo revoluções discretas.
327. Ensina como se refutasses todas as evidências.
328. Age como se surfasses na crista da onda dos acontecimentos.
329. Glória ou posteridade, qual das duas a mais ingrata? Antes a fome que a fama. Ao nome prefere a lama.
330. Encara os teus deveres, não como um sacrificio, mas como uma distracção.
331. O amor destroi mais familias que a riqueza. Toda a riqueza é trabalho desperdiçado somado a roubos acumulados. É o amor e a riqueza que operam as grandes mudanças no mundo.
332. O sábio permanece contente no momento do desastre. O contentamento é a maravilha que ninguém lhe pode extorquir.
333. O sábio combina o espirito da dança com a prudência. É ingénuo para com as pequenas mentiras porque está sempre atento às grandes.
334. A imperfeição é mais perfeita que a perfeição porque a perfeição se circunscreve a si mesma e a perfeição nunca mais acaba.
335. O que é oferece a sua presença na deterioração.
336. O vazio é a abundância de espaço. A abundância é a míngua de espaço.
337. Quem acumula sofre o peso do acumulado. A acumulação leva à inércia.
338. As contradicções não são suficientemente falsas nem verdadeiras. As verdades só se adequam a factos menores. Os paradoxos são as sobremesas das aparências.
339. O Paradoxo é constante e não leva a nada.
340. O engenhoso parece desageitado. Mas é ele que se safa.
341. A grande eloquência parece uma tagarelice, mas é o prazer de falar que torna as palavras mais intensas.
342. O desejo aquieta o mundo. A acção abre portas para o contentamento. A inacção é a diferença da indiferença. As coisas não precisam de ser controladas.
343. O desejo é a maldição que traz a benção.
344. O sábio é ganancioso de contentamento.
345. A miséria alheia as pessoas dos sentimentos elevados.
346. É através da alegria que condensas o que há de melhor. Os actos dos outros são apenas o desenvolvimento inconsequente da alegria que trazes no ventre.
347. A experiência vale pelo que se experimenta e não pelo que se conhece. O conhecimento é uma experiência. As atribulações do conhecimento não são forçosamente induzidas da experiência.
348. Quanto mais sabes mais gostas de experimentar por experimentar.
349. O sábio vagueia para experimentar. Não acumula conhecimentos nem julga sas suas experiências.
350. O seguidor do Tau-Tau vai desaprendendo. Cada dia ele sabe menos. Ele prefere a ingenuidade à lucidez.
tau-tau (251-300)
251. A arte ínsipida é mais higiénica e subtil. A arte intensa é mais òbvia e porca.
252. O Tau-Tau é arte e e a gama dos sabores. Pode parecer inaudível, mas ouve-se. Pode parecer invisível, mas vê-se.
253. O Tau-Tau é concórdia e discórdia. É como a respiração. Quando inspira todo o ar se concentra numa zona, quando expira todo o ar se dispersa.
254. O Tau-Tau é como a música barroca: combinatória de simultaneos em multiplos sentidos.
255. Se quiseres retirar força a um adversário deixa que ela se disperse. Por mais forte que seja, se a sua força estiver distribuída em muitas zonas o núcleo central será enfraquecido.
256. Usa a força com a maior intensidade e concentração. Persistência e elasticidade são os eixos fundamentais do vigor.
257. Sê flexível como as mulheres. Sê musculado como os guerreiros.
258. A subtileza e a artimanha são mais eficazes do que a força exuberante.
259. A dissimulação penetra no amago de um adversário com mais exactidão do que mil espadas. Destroi o inimigo com palavras. Move-te no invisivel. Usa os seus exércitos para o destruires.
260. O Tau-Tau é o manager do mundo. A sua inacção aumenta a produtividade. No entanto não há perguiça. Apenas uma atenção quieta.
261. A Natureza é desejo. O homem quer arrancar o desejo de si como se este fosse um mal. O homem, na melhor das hipóteses, deseja não desejar. A natureza deseja tranquilamente. E assim as coisas despontam para a exuberância.
262. O inanimado não mostra o desejo. Onde há vida há desejo. A vida procura estruturas cada vez mais complexas. Na complexidade há desejo. Só a simplicidade morta se contenta. O Tau-Tau é o oposto desse tipo de amputação que celebram os budistas.
263. Amar é levar o desejo mais longe. Não há amor sem interesse, seja filial ou passional.
264. Sendo o amor interesseiro ele pode ser o interessado e servir o que se ama.
265. A religião procura obter situações vantajosas ao apelar aos poderes calmantes ou irrequietos do invisível.
266. A justiça é onde os interesses pessoais coabitam com outros interesses de outras pessoas de uma forma ajustada.
267. Se as pessoas não se adequam umas às outras podem afastar-se. Quando os interesses divergem surge a guerra. Quando faltam interesses começa a decadência.
268. As hierarquias existem para que a energia e a inércia sejam bem aproveitadas. As hierarquias surgem com naturalidade nos sistemas. É por elas que os homens lutam.
269. Depois de estabilizada uma hierarquia é muito difícil alterá-la. Os homens lutam por estar no topo das hierarquias como se procurassem a sua perdição.
270. A religião e os ritos dão legitimidade às hierarquias. A legitimidade é apenas um aspecto teatral. A semelhança entre o tribunal e o teatro já vem desde os gregos.
271. A religião torna os deuses mais fortes e os homens mais fracos. Os homens que negoceiam com ínvisivel ficam para sempre em dívida para com ele.
272. O Tau-Tau torna os homens mais fortes e os deuses mais decorativos. Há nesta afirmação algo de rocaille.
273. A dependência extrema do ínvisivel chama-se devoção. Em vez de escravo do mundo o devoto é escravo do ignoto. Vai-se tornando ignorado e alheio ao mundo.
274. O devoto que nada pede está intoxicado de divindade, tal como o opiado do òpio. A devoção é mais barata do que o òpio ou o deboche. Por isso alguém disse que a religião é o òpio do povo. Esqueceu-se de dizer que a revolução era uma ratoeira que apenas leva à substituição hierarquica.
275. A igualdade absoluta é não só impossível como indesejável. A hierarquia existe na natureza como a àgua nos corpos vivos.
276. Há porém momentos de equilibrio e de igualidade social: o banquete e o carnaval.
277. O sábio prefere a lucidez à fé. O sábio sabe que o improvável e o desconhecido são mais fortes que a hipocrisia da normalidade ou que a evasão desta.
278. A fé rejeita o novo, o sábio garante-o.
279. A esperança é um desejo muito defenido pelo qual se aguarda. O sábio satisfaz os seus desejos mal pode e não procura satisfações no futuro. Na esperança há algo de demente que engendra paradoxos.
280. O messianismo é o paradoxo politico-religioso da esperança.
281. O sábio prefere afinar a sua capacidade de extrair prazer do maior número de coisas possiveis em deterimento de uma esperança à qual sucederão decepções.
282. A verdadeira esperança só pode ser esperança do que já aconteceu. A improbabilidade do acontecido é superior à probabilidade do por acontecer.
283. Aceita a tradição com indulgência, rejeita as utopias com intiligência . É a tradição que regenerará as coisas. O espirito da revolução é o do desprezo.
284. Quem olha para o passado menos próximo constatará que este não estava preparado para chegar ao presente. Um momento do passado não é a potência de todos os futuros. Se assim fosse, tudo o que acontece estaria previsto no momento inicial, como um plano bem preciso. O que acontece é que cada momento abre fissuras na determinação.
285. O presente é o que desvia o passado dos seus propósitos mais consequentes. Essa é a importância do presente.
286. Os homens sempre gostaram de idealizar passados monumentais, gloriosos. Sabemos que nada disso aconteceu, antes pelo contrário.
287. O céu seria puro, a terra, fonte de abundância. A duração da vida vasta. A natureza acolhia o homem como uma mãe diligente. Podiamos continuar esta insensata fábula horas a fio, como se falássemos de coisas aborrecidas.
288. Os nossos mitos actuais supõem uma coisa a que chamamos dinossauros. Mas o que houve foi um tempo sem nomes. E uma solidão ainda mais profunda perante um mundo essêncialmente desconfortável, onde a primazia era dada à subrevivência das espécies.
289. Descobriu-se com o tempo o prazer do acessório, a vertigem do sagrado, a excitação da guerra, a insensatez da poesia.
290. Devemos exaltar a fraqueza, o desnecessário, o frugal, as antípodas do sublime.
291. O homem cai e ama a sua queda.
292. Rasga as sedas, livra-te do jade. Come arroz.
293. O Tau-Tau recicla.
294. Aceita os dejectos como se fossem ouro.
295. É o esterco da terra que regenerará o mundo.
296. O Tau-Tau é o que faz rir desbragadamente os que estão em baixo. Os poderosos precisam da seriedade para se fazerem respeitar. Os que estão no meio pensam que a respeitabilidade os pode fazer poderosos. Por isso têm cara de pau.
297. O riso corroi as hierarquias.
298. Os que não riem procuram salvar-se através de rituais violentos.
299. O sábio é como uma hiena, aproveita o que os outros já não querem devorar. Por isso solta gargalhadas.
300. O Tau-Tau parece uma loucura, mas não passa de uma doce irrisão. Os que não riem elouquecem com mais frequência.
tau-tau (201-250)
201. A subtileza obtém coisas que escapam à intiligência.
202. Por vezes a subtileza está próxima da atrasadice mental.
203. Que importa a confusão? Onde reina demasiada ordem reina a esterelidade. Preferes a improvisação ou a impotência? Preferes o dogma ou as subtilezas? Preferes o poder ou a liberdade?
204. Sê o passivo e o activo. Não te contentes em seres apenas a ravina do mundo. Responde-te a ti mesmo. Opõe-te, refuta-te. Compõe-te, confirma-te. Ama platónicamente. Sê um predador sexual. Ou desnaturadamente casto.
205. És aquilo que flui, ora num sentido, ora noutro. O amor e o òdio vêm ter contigo. És inapto como um recêm-nascido? Forte como um homem maduro? Titubeante como um velho? Não. Tu és a elasticidade que contorna todas as idades.
206. Provas a luz e a obscuridade como se tratassem de aperitivos para o Tau-Tau. Sabes o que é o mundo? Ou apenas sabes que sempre houve algo em teu redor ou nas coisas que aconteceram antes e que os homens testemunharam?
207. Tens coragem para seres idealista e rejeitar as sensações como se estas fossem notas de rodapé de uma essência? Não me parece que esse seja o teu caminho!
208. Retorna como se o retorno fosse um passo em frente. Avança para o explendor da inutilidade.
209. Honra-te com a honra. Sê humilde com indiferença. Aceita as honrarias como um ornamento e as humilhações como uma oportunidade. Torna-te o perito de cada ocasião.
210. Quem teme a habilidade senão os inábeis?
211. A espontaneidade, por mais inábil que pareça é extremamente hábil. O inábil nunca será gracioso se nunca se exercitar.
212. Há homens que se tornam ferramentas vivas.
213. O mundo está em mutação permanente e nós participamos voluntária ou involuntáriamente nessa mutação. Os que querem mudar o mundo serão redundantes? Estarão contra a natureza? Ou são apenas instrumentos desta?
214. Participar na mudança do mundo não é obdecer a uma forma, mas entrar no jogo da formação. O numero de classes das formações pode ser simplificado e arrumado.
215. Podemos chamar a essas classes «mutações». É preferivel agrupá-las num número inferior a 100.
216. Nada se possui. Apenas há coisas que se desfrutam. Por isso, de um ponto de vista mecânico há relações sexuais mas do ponto de vista da consciência e da «subjectividade» há apenas onanismo.
217. O desfruto é o que se imaginou e sentiu naquilo que nunca se terá, porque tudo é impossuível e o experimentado é filtrado por representações excessivamente pessoais.
218. As coisas podem germinar ou abortar. A complexidade de causas que contribui para cada acontecimento raramente é mesma e nem sempre é concordante. É certo que há uma inclinação de aspectos que vão num determinado sentido.
219. O sábio intui a direcção dos acontecimentos, mas nem sempre acerta. O sábio tem perante os acontecimentos mais do que uma opinião. Muitas vezes os acontecimentos surpreendem-no. Nesse momento há júbilo.
220. A dificuldade, a facilidade, a força e a fraquesa, são aspectos coreograficos da dança dos acontecimentos. Por vezes o recurso à força é mais eficaz. Outras vezes a inacção provoca revoluções. Frequentemente os fracos desmoronam os fortes. Há sempre forças que resistem às forças que dominam. O sábio procura dar suavidade e flexibilidade aos equilibrios de forças. Uma mudança suave é preferível a uma revolução.
221. O sábio pode não ser extremo ou extravagante mas jamais será fanático. Mas a extravagância leva frequentemente à sabedoria ou ao nada.
222. Quem faz uso de uma força intensa será alvo do seu eco.
223. Quem se limita a ser fraco e passivo incorre no risco de ser esmagado.
224. O sábio sabe que tudo é combate. Por isso foge das guerras. A cobardia do sábio, comparada com a insanidade dos generais, é mil vezes mais digna.
225. A honra de um general está coberta de mortes e sangue, a cobardia do sábio não faz mal a uma mosca.
226. As guerras regeneram os povos, matando as suas gerações mais prometedoras e deixando os países destroçados e mergulhados em impostos.
227. Antes do dever de lutar e morrer pela pátria os homens tem o direito elementar de sobreviver e justificar os esforços de perpétuação dos seus antepassados.
228. Quando a tranquilidade e o bem-estar de muitos está ameaçado é justo que alguns queiram combater. Sem o sacrificio de alguns combatentes as tiranias seriam ainda piores sobre a terra.
229. A violência procura as suas ferramentas. As ferramentas da violência são feitas para ser destruídas.
230. A finalidade dos exércitos é a de desaparecerem.
231. A tarefa do sábio é fazer as coisas desabroxar ou ajudá-las a murchar, se essa for a necessidade mais evidente.
232. O sábio procura acima de tudo a vitalidade e a persistência.
233. A diferença entre um assassino e um heroi de guerra é que um é obrigado a cometer crimes pela sua própria submissão à vontade de chefes enquanto o outro o faz normalmente por livre iniciativa. è o confronto do srviço publico e da iniciativa privada.
234. Quer na guerra quer no crime há um tenebroso prazer.
235. Não há justificação para que se façam estátuas aos herois de guerra e não aos assassinos.
236. O Tau-Tau só tem defenições falsas. Ser falso é mais fácil. A facilidade tem algo de verdadeiro.
237. Quem é que compreende o mundo de facto? É essa uma das tarefas pelas quais nascemos? Ou devemos limitar-nos a viver sem colocar questões inuteis?
238. Quem é senhor dos seus afectos e dos seus estados subjectivos não precisa de pensar em si.
239. As forças vêm de todos os lados: resistem, forçam, reforçam, desistem. O sábio gere as suas próprias forças. Ao gerir-se gere o que o envolve inadevertidamente.
240. O carrasco do mundo é o próprio mundo. Se o mundo procura agarrar-se às suas origens, porque as origens estão presentes a cada momento, o mundo também se agarra à sua auto-aniquilação.
241. Quem se mantém em repouso demasiado tempo enferruja. Quem está sempre em actividade sucumbe. O sábio alterna constantemente repouso comactividade.
242. O Tau-Tau não é do género de acumular dívidas. Na prática ele só acumula dádivas. As criaturas julgam-se devedoras a ele. Mas ele está-se nas tintas para esses sentimentos mesquinhos. O Tau-Tau dá por egoísmo: da dádiva extrai um extremo prazer.
243. Os deuses procuram favores. Os homens negoceiam com os deuses. Sacrificios em troca de favores. O Tau-Tau não entra em negócios reles. Dá o que tem a dar. O que não dá não virá a dar só porque alguém pedincha. O Tau-Tau não cede a chantagens.
244. Qual o sentido do Tau-Tau? Todas as questões quanto ao sentido são incompreensões da natureza do Tau-Tau. O Tau-Tau é determinado, mas o seu modo de acção é a indeterminação. O Tau-Tau faz sentido para cada momento, não faz sentido para o passado nem para o futuro.
245. Toda a intenção é apenas atenção.
246. O fruto da atenção é ainda mais atenção.
247. Mais atenção leva ao extase.
248. Não há uma sequência das coisas, mas multiplas sequências que se cruzam.
249. Uma sequência pode manter-se suspensa durante muito tempo. As sequências podem ser descontínuas. O ressurgimento de uma sequência suspensa é imprevisível.
250. Para uns o Tau-Tau é desprovido de sabor. Para outros o Tau-Tau é a intensidade das especiarias. É a geografia que cria estas necessidades.
tau-tau (151-200)
151. A insistência na inexpressividade pode ser considerada um cume ético mas é a ruina dos sentidos. Uma ética sem sentidos é como um filme mudo para cegos.
152. O sábio não pretende endireitar o torto, mas sómente dar um uso adequado a essa complexa geometria.
153. O sábio introduz a desordem no vazio e o vazio na desordem. A ordem é inevitável. A organização requer um esforço suplementar. Há que escolher o momento apropriado para organizar.
154. O mundo aceita-nos e rejeita-nos com leviandade. Temos o dever e a possibilidade de críticar o mundo, a natureza, deus, os deuses, as leis e os governos, mas sabemos que esses lamentos apenas nos servem para consolar. As orelhas que regem as coisas só são sensíveis aos seus sentimentos patetas.
155. O sábio aceita o mundo com reticências. Procura a excelência. Não desdenha a vulgaridade. Mas também não a cultiva por aí além.
156. Haverá algo mais artificial do que a legitimidade? A legitimidade é a burocracia do que deveria ser a graça. Quando a graça deixa de existir a legitimidade permanece como uma desgraça.
157. A fama sussurra entre o boato e a glória. O sábio está fora desse sussurrar. Por isso ele é glorioso.
158. Ao aceitar o que acontece ele torna-se tentacular. Aceitar não é conformar-se, mas ser um cooperante das transformações. Essa cooperação transforma decisivamente as transformações.
159. Alguém disse: é movendo que repousamos. Ou: é fugindo que nos encontramos. Ou ainda: é esquivando que combatemos.
160. A natureza tagarela baixinho. Não há silêncio nas paisagens, nem nos bichos. Mesmo o vento faz com que os objectos psalmodiem. O ruído da chuva é prodigioso. Mas a natureza não diz nada. É como se falasse pelo prazer de falar.
161. Do mesmo modo a música fala sem procurar nenhum sentido. É jogo e vontade de exprimir por exprimir.
162. Se a natureza não transmite nenhum sentido porque é que o homem o procura? Se o homem não procurar demasiados sentidos começará a sentir. Sentir é ser-se natureza.
163. O amador é mais que o amor ou algo que se concentra no objecto amado. O amador é a abertura para algo concreto. É a desobstrução amatória.
164. Tenta manter-te muito tempo na ponta dos pés e ganharás novos músculos.
165. As justificações são sintomas de impotência.
166. A sabedoria implica um estiramento do corpo e do pensamento, assim como a musculação dos mesmos.
167. Faz da glória um segredo. Os segredos fortalecem a glória.
168. Um mistério não é mais do que um bluff. Com perícia pode dar muito lucro.
169. Ele orgulhava-se de não ser orgulhoso. Baahhh...
170. O amor abole a repugnância e sublima-a numa atracção anormal. O sexo procura-a àvidamente.
171. Os atributos do mistério são não-existentes. Silêncio? Só se fores surdo. Profundidade? Tudo o que é fundo tem limite. Solidão? Baah! Imutabilidade? Por quanto tempo?
172. O Tau-Tau é ubiquo mas não omnipresente. A sua presença é discreta. O Tau-Tau é movediço, ou se preferirem atópico. Está sempre aqui, embora já não esteja aqui nem more ao lado.
173. O Tau-Tau é a madrasta do mundo. Pérfida? Esforçada? Negligente?
174. Podia chamar-lhe todos os nomes. Há nomes inadequados?
175. Quando um místico profissional diz convictamente que alguma treta é inominável poderemos confiar nele? Todos os nomes são convenções. É certo que há sons mais agradáveis do que outros, e mais eficazes quando pronunciados. Mas na escrita todos os nomes ou são bons ou pardos.
176. Todos os limites são borbulhantes. Nos limites as formas estão em guerrilha.
177. O infinito é apenas uma metáfora de acumulação progressiva. O infinito não adianta muito ao sábio. Só aos matemáticos.
178. Se queres caminhar no infinito não vás muito depressa. Nunca o encontrarás por mais que corras. A julgar por Zenão...
179. Para uns o infinito é a imobilidade e o ser, tal como para outros o instante é a eternidade... mas não durante todo o tempo!
180. Se queres caminhar no vazio transforma-te em vazio. Mas se te transformas em vazio não caminharás. Na melhor das hipóteses serás caminhado.
181. No Tau-Tau não há diferença entre vazio e atrito? Há mas a artephysis é mescla. Não é possivel separar o vazio do atrito.
182. As formas são mais constantes e limitadas do que o desejável, embora a sua combinação possa ser infinita.
183. A quantidade das coisas mais pequenas que existem no mundo é em número muito menor do que tu possas imaginar.
184. A artephysis é a combinação de um número muito limitado de elementos. Poucas coisas chegam e sobram para constituir tanta diversidade.
185. A subjectividade é uma pequena coisa sem consistência que experimenta um prazer lubrico em imaginar-se sem limites.
186. O mestre mostra calma. Se não mostrasse calma não conseguiria amestrar os discípulos.
187. Um tom grave é mais convincente. Um mestre que destile a sua sabedoria com voz de falsete é menosprezado.
188. A gravidade é apenas um factor técnico. Inspira mais confiança.
189. É precisamente por isso que desconfiamos da gravidade. Não devemos desdenhar as coisas ligeiras, ruidosas, agitadas, alegres e inconstantes.
190. Agindo com precisão e calma o mestre encanta o mundo e arrasta uma elite de discipulos. Esperemos que não os empurre para o abismo.
191. Agindo com ligeireza ele diverte-se. A sua subjectividade descontrola-se e torna-se mais autêntica. Ele gosta de ir para sitios isolados exprimir-se como um macho na época do cio, dansando frenéticamente, cantando desafinadamente junto a ravinas.
192. O mestre controla quando quer e descontrala-se quando quer. O silêncio mistificador e a alegria dos gritos pânicos são duas faces da mesma moeda.
193. O sábio gosta de viajar. Ele não viaja por curiosidade mas para manifestar um natural desapego por cada lugar ou um ambicioso apego a todos os lugares.
194. O sábio tem alergia à contabilidade e à sua lógica. Se te aparecer um «sábio» que fale em percentagens e seja um bom gestor, considera-te logo uma excelente vítima do seu negócio.
195. Um viajante não é ninguém em fuga. Já não foge para se encontrar. Apenas viaja para permanecer em si. É como um propagandista da sua vacuídade. No anonimato sente as cidades. Se alguém vier ter com ele tanto melhor. É como os vaqueiros solitários e nómadas dos westerns.
196. Não sabemos se o sábio tem bom ou mau fundo. Por vezes a melhor ajuda é feita de pequenos actos de crueldade. Outras vezes mergulha numa compaixão ilimitada. Noutros casos vêmo-lo mergulhado na indiferença, não só para com os outros, mas para consigo.
197. Aceitar tudo e não rejeitar nada? Rejeitar tudo e não aceitar nada? Ser indiferente a tudo e a nada? Acolher os males como o supremo bem? Acolher o bom como o germen do mal?
198. «Deus está no bom detalhe», escreveu Flaubert. O detalhe só existe pela experiência da atenção. O Tau-Tau é a experiência dos detalhes. Quanto a Deus e ao resto...
199. Há uma altura em que os detalhes se confundem com a ausência de detalhes.
200. O mestre obtém o que quer graças à sua vulnerabilidade e humor. É inconsistente. A sua memória não o ajuda. Os ritos provocam-lhe nauseas. Respira devagar como se lhe faltasse força.
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