Thursday, September 13, 2007
DA INDISCRIMINAÇÃO
A meditação é a Métis despida de percepções.
Mahabuda da Tangória
1. Quer a miséria quer a abundância provocam um choque que leva à retracção e à multiplicação dos meios da glória ou da secagem. Este é o inquérito indiscreto desses caminhos. Toda a inquirição é um suplemento, uma floresta superflua de causas. O desiquilibrio resultante do choque supramencionado requer, mais do que consolo, remédio. O remédio só pode vir como teoria visivel ou visibilidade teorica. As imagens, embora de duração limitada, abrem-se à impermanência. O espirito fixa nos seus arquivos o que na retina é apenas passagem. O catálogo das imagens curativas é a Doxa.
2. A teoria é a encenação estrategica dos meios visiveis. As táticas que revela estratificam-se em sequências modais. Os aspectos revelados tanto podem ser calmantes quanto salpicados de colorações destrutivas e excessivas. A teoria tende a distinguir-se de si própria. É krisis contra as suas asserções mais fluentes. Difere-se em si, para si e contra si. É este o método superior que permite o entranhamento cognitivo nas coisas e a discriminação do manifesto. Quanto ao ainda não manifestado (ou imanifesto), só pode ser advinhado como possibilidade sequêncial. Conhecer, é acima de de tudo categorizar hipoteses sequênciais que se adequem ao manifestado, ao manifestando e ao manifestável.
3. Consideremas a massa original no seu estado imberbe como possibilidade desmassificadora. Como raiz antes da produção e do mundo como reprodução desmassificante. A raíz não sendo improdutiva é um não-produto. Os sete princípios generativos surgem da Megamétis, o intelecto pragmático, a suprema astúcia. Os sete principios são produtos e produtivos. Os dezasseis principios são meros subprodutos. Há no entanto uma entidade antes da krisis que não é nem um produto nem produtiva. É a homeostase absoluta. As explicações para o aparecimento da krisis (o mundo como distinção e multiplicação) são insatisfatórios, e as hipóteses um engodo. O mundo não precisa de justificações para a sua a origem ou para a sua morte. O sentido só pode ser assinalado como aquilo que é e não de onde pode ter surgido ou como estagnará. No entanto, a homeostase que antece a krisis, repõe, como algo magnético, os desiquilibrios fecundos que nascem quer da acelaração criativa, quer das degradações sucessivas. A prática das formações e deformações do mundo é a Homeostética.
4. Embora a percepção, a inferencia e os testemunhos sejam reconhecidos como provas dúbias não poderemos deixar de recomendá-los como atenção que leva ao opinativo, isto é, à formação de doxas, por mais liberais que estas sejam. Mais do que meras provas circunstâncias de hipóteses fecundas necessitamos das resistências das provações. Uma prova, mais do que uma certeza é uma recomendação e uma endoutrinação. Os meios de demonstração tornam persuasivas e eficases as provas. Tudo deve ser provado de modo a que as causalidades não fiquem em àguas de bacalhau. O rigor das provas torna mais consistente a teatralidade de todas as acções naturais e artificiais.
5. A percepção é a permeabilidade à circulação das coisas. É a possibilidade das criaturas se deixarem afectar de um modo periférico ou consciente pela rede de ruídos (intensos ou suaves) ou por signos identificáveis. As inferências e os aferimentos são a priori interferências. Nós somos o espelho do mundo (microscópico ou macroscópico) assim como o mundo é nosso espelho. O conhecimento é não só a marca de quem o possui como uma acção diligente sobre o estado das coisas. Os testemunhos tornam o testemunhado fiável. As revelações tornam o mundo uma revelação.
6. A percepção é uma rede de interferências. As coisas que se deixam apreender pelos orgãos sensorias são simplificações de um ruído de fundo. Essas simplificações são sugadas por mecanismos esquemáticos que as fixam na memória. A percepção implica um filtro «representativo». Não há presença pura. Os filtros representacionais nascem de atitudes predatórias, defensivas, guerreiras, disuasivas, etc. A ideia de testemunho é a de um ciclo de guerra que se consolida num conjunto de imagens estáveis. A ideia de revelação é a de instabilidade imaginal.
7. As lacunas perceptivas devem-se à fadiga da digestão sensorial e à impossibilidade de haver um continuo entre o interior e o exterior. A proximidade e a distância acabam por ser formas de apreensão distinta e a distância está sujeita a um leque de ambiguidades muito maior. A instabilidade provocada pela distância leva a jogos mentais complicados que provocam lacunas e confusão. O desejo de diferença e subtileza é um factor no afinamento dos sentidos, mas também consome mais tempo, obrigando a suprimir dados desfocados. A instabilidade mental é gerada devido à superabundância das percepções de todo o tipo. Qualquer focagem obdece a uma bricolage estratégica, a uma escolha que é da ordem da economia, da sobrevivência ou do prazer, embora possa haver outras causas.
8. Os seres são os clientes do mundo. Supõe-se que há uma materialidade dada que os esquemas mentais tentam despir. O sujeito é a interface entre os esquemas e a materialidade. A não-existência é entendida como limite da desagregação. Por isso a intelecção procura a subtileza e as diferenças. Organizar é sobreviver, é extremar as nuances para melhor resistir aos efeitos desagregadores. A intiligência é um dado coexistente à materialidade dada. Não há diferença essencial entre estes dois termos senão como distinção categorial. A intiligência consciencializa-se na capacidade de assimilar os similares e dissimilares. O mundo, que era não-engendrado, tende a cohabitar com as representações nascentes dessa assimilação.
9. Há uma causalidade difusa que é a que opera as grandes mutações e onde há alguma indeterminação, e há uma causalidade entranhada que é a subjugação dos seres e coisas às suas necessidades específicas e que é a servidão aos limites das suas «familias». A singularização e a vontade de marcar diferenças pode abrir possibilidades de mutação que não se tornarão indiferentes às outras criaturas. Quanto ao que não se deixa existir não pode ser arrastado para a esfera da existência nem para o turbilhão das manifestações.
10. Os efeitos são o sumo de causas apropriadas. Uma causa torna-se apropriada quando é propícia a que os efeitos se tornem propriedades. O que vai sendo é graças aos meios que se disponibilizaram para essa ida. A natureza procura a produção como forma de resistir à uniformidade e à nulidade. A aniquilação reduziria o manifesto ao inmanifestável. A uniformidade enlataria o mundo numa sopa unitária e anestésica.
11. O que se manifesta é fruto de uma produtividade cujos agentes estão em metamorfose. Muitas vezes as causas simples são admissíveis e pertinentes, o que não quer dizer que não possam acontecer infracções e excepções a esse tipo de causalidade simples. O facto de haver uma causalidade admissivel permite-nos formar padrões de percepção e de comportamento e deslocarmo-nos entre as coisas com confiança.
12. O que se deixa perceber como causável tende a a degradar-se, apresenta-se como delimitado, sujeito a metamorfoses e capaz de se dividir. É contextualizável e dependente de um determinado meio. Deixa-se apanhar na teia das projecções perceptivas através de representações nas quais se tenta classificar. O que agrega é passivel de ser identicado como proporção de componentes. Está inserido num conjunto de forças estáveis que lhe atribuem um papel na circulação das coisas.
13. Ao que resiste à participar na rede causal e a degradar-se como manifestante não se aplicam os anteriores atributos.
14. O manifesto é um entrançado de três agentes: o unitivo, o refractante e o indiferente. A natureza enquanto dada é o não-indivisivel. A descriminação que a ilumina tem que a negar e negar a negação. A natureza é «abjectiva», fluente, prolífica, inconsequente. Os esquemas e formas pelos quais se deixa possuir são-lhe co-existentes, como um outro lado da medalha. São similares na medida em que sempre que um difere o outro o segue.
15. Os agentes entrançantes também podem ser designados de hedónico, dolorista e ataraxico. São potenciadores do extase, do sacrificio e da decadência. Os jogos de poder levam a que ora uns sejam dominadores, dominados, parasitas, oportunistas, excentricos, coexistentes, solidários, ignorados, etc.
16. O agente hedónico é fluente, flexível e ligeiro; o dolorista é emotivo, esforçado e rigoroso; o ataraxico é atritoso, afundante e petrificante. A sua co-produtividade encaminha o mundo para uma complexidade crescente.
17. O indiscriminável e o repouso originantes são «dogmatizados» (inferidos-provados-intuidos) pela persistência dos três agentes entrançantes em acto. Caso estes não agissem o indiscriminável seria pura ausência. O indiscriminável é atestado através da dissipação dos agentes uma vez que as suas propriedades persistem nos jogos discriminantes em que estes se envolvem.
18. O indiscriminável assiste como conexão originante.
19. O sopro singular subsiste como bomba da animação das criaturas. As criaturas têm a sua razão de ser nos obstáculos da experiência. A actividade entra sempre num jogo de interdependências e/ou cohabitações de acordo como o ethos em que se movem as criaturas. A actividade só se realiza como liberdade. Liberdade absoluta ao nível dos sopros e liberdade relativa no jogo ético.
20. É no divergir que as singularidades soprantes encontram o seu para quê, tornando-se testemunhas da multiplicidade, espelhos «solitários» do indiscriminável, espectadores de uma ilusão resistente, ou não-re-agentes, neutros que sustentam na inactividade a acção.
21. A interface entre as representações que se acolhem e o neutro que reflecte através da não-acção que digere, leva à emancipação do sopro singular, quer do ser para os outros quer do ser para si mesmo. É como a fábula do coxo e da cortina. Desta junção predadora prossegue a cavalgada complexificadora.
22. Dos perliminares da matéria surgem os orgasmos da consciência, assim como o sujeitocentrismo e o seu oposto nihilista.
23. A intiligência funciona como um atractor magnético, organizando, orgasmando, censurando e ampliando as possibilidades através de objectos novos que surgem da secagem esquemática assim como de jogos fantasistas. A virtude, a sabedoria, o desapego e a soberania dão o toque de caixa quando predomina a ligeireza brilhante, tal como os seus opostos ocorrem quando a inércia obscurecente está em vantagem.
24. Os pensamentos que só se auto-descriminam são egoístas e não estão abertos aos prazeres da coabitação. Desse egoísmo surge a sujeição e os equívocos, assim como a injustiça na reciprocidade.
25. Os instrumentos perceptivos e cognitivos executam suas redes de funções num estado de alerta, de simpatia mútua e eco selectivo. A pertinência do indiscrimável é ser o que não se sujeita às causalidades e casualidades. Na sua plenitude nua nenhum instrumento o activa ou desactiva, porque, embora sendo espaço não tem dimensão.
23. O corpo-pénis (dito subtil) é primaveril, inconformado, nómada, determinado. Emigrando de corpo em corpo, vai-nos livrando do sofrimento substituindo-o por estratégias ataraxicas e por um sentimento de plenitude.
26. O corpo-pénis existe como transição para o corpo indiscriminável. No seu tango erótico assume-se em performances dramáticas, eriça-se como que possesso, solta as máscaras e destroi o eros diletante e serpentino. A sua exuberância resulta da maior próximidade com a Terra e suas descargas. É nesses momentos que é espelho da abundância originante e indiscreta.
27. As disposições preliminares provocam a revelação do inato. A germinação uterina obscurece os efeitos, ao mesmo tempo que os procura de uma forma inquietante. A virtude e o repouso dependem da persistência na disciplina. O rito é um instrumento da intensificação. O adorno revela o que falta ao conceito.
28. Na pulverização há uma absorção da Natureza, tal como através da despossessão o poder e o raio de acção aumentam. Assim o macho despossui-se pela emissão seminal, assim como a mulher o faz, de um modo mais concentrado, ao dar à luz.
29. O grande obstáculo é uma criação intelectual, denominada obstrução, e consubstanciada na doença, na morte, na dor e na enfermidade. É a obstrução que torna o tempo arrasador. O trabalho de descondionamento chama-se desobstrução.
30. Sem as disposições babosas nunca haveria um corpo-pénis. A lubricidade é a porta para a subtileza. A subtileza regenera as disposições grosseiras e dá um novo ânimo ao corpo visível.
31. A dor torna consciente a separação do corpo do mundo, por mais interna que seja. Assim o sofrimento é causado pelo distânciamento relativamente à natureza das coisas.
32. A natureza é emancipação. É a natureza que emancipa as criaturas destruindo os mecanismos de separação que provocam o distânciamento. A contemplação e a meditação limitam-se a aniquilar os separadores e a reunir o que nunca esteve separado. Os objectos são efectivos, isto é, reais. A natureza não é uma ilusão, embora provoque ilusões quando não contemplada.
33. Os povos copulam porque procuram perpétuar a acção. A gratificação do desejo faz com que o renitente em se manifestar se manifeste em festa. Só o apego ao desapego faz com que as criaturas se apeguem ao indiscriminável. E para que haja criaturas os povos multiplicam-se. Sem essa multiplicação o indiscriminável permaneceria abandonado e secaria. É a lubricidade da ilusão que faz com que ele não estale e se parta.
34. Tal como um dançarino desiste de dançar desnudando-se perante os espectadores assim o faz a natureza quando abandona a mobilidade, desistindo do movimento e revelando as suas formas originais (a sua genitalia). Mas o contrário também é correcto. É o movimento que abandona os dançarinos e a natureza. O estado incondicionado é dança nua, desmascarada da natureza ou do bailarino.
35. Nada é mais delicado e gracioso do que a natureza com a sua exuberância multifacetada e o seu efeito narcotizante. Mas a natureza, quer nas suas quietudes quer nas suas inquietações vibra graças aos seus pudores. Mesmo perante a sua essência mostra pudor. Só se expõe para fascinar o Ser.
36. Assim sendo, as essências não são emancipadas nem emancipadoras, nem emigram de corpo para corpo, mas mantêm-se apertadas como forcas aos corpos de que fazem parte até que estes arranjem coragem para se libertarem.
37. Pelo contrário, a natureza é auto-satisfeita na sua integridade e solidão, não se deixando aprisionar em questionários ou outras formas de indagação. Por mais limitada que seja, a natureza emigra perpétuamente para si mesma através de ciclos metamórficos, desanganando-se assim dos atritos e condicionantes de cada etapa.
38. A natureza perverte a sua «natureza» distribuindo-se através de modalidades de articulação. Mas o conhecimento dos modos de agir dessas modalidades liberta das causalidade perversas.
39. Assim com o estudo das articulações dos elementos e das sequências metamórficas esclarece a relojoaria do mundo, assim se revela o conhecimento do indiscriminável, despojado das ânsias perceptivas, conhecimento puro, desencarnado e despido de suposta essências.
40. Possessa deste re-conhecimento, e da natureza que se cessa (devido à retirada de suas modalidades de articulação), a criatura emancipada torna-se espectadora da sua própria dança.
41. O «reservado» devem indiferente, contemplando a articulação da natureza. A natureza desiste de si mesma ao ser contemplada. Ao ser contemplada des-contempla-se e retorna ao indiscriminável. Embora a coexistência consistente se mantenha, a criação só se perpetua em enciclicas ilusórias (embora as suas produtividade seja real).
42. Com a realização da sabedoria perfeita, a virtude e o repouso deixam de exercer o seu charme e de funcionar como causas. A ilusão só existe através do movimento. Na imobilidade a magia sucumbe.
43. É o tempo que se concentra num instante. Da mesma forma é o movimento que se intensifica e se concentra na imobilidade, pois a imobilidade é potência de movimentações.
44. Quando a natureza cessa de agir ela cumpre-se (e comprime-se) e o «reservado» alcança a emancipação incondicionada e interminável.
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