Thursday, September 13, 2007

EPICULTURA OU A CULTURA SUPREMA


1. A cultura é onde o prazer se acumula. É o cume indestrutível. A epicultura é o cume dos cumes, opondo a excelência qualitativa à cultura degradante. Nela o atribulado e problemático da hipocultura torna-se apenas complexo e radioso, livre de raiva ou de parcialidades doutrinárias, uma vez que tais atitudes são indícios de fraqueza. Consciente de si e da sua qualidade, o seu movimento é no sentido de uma epicultura ainda mais aprazível, mais intensa, mais complexa e mais graciosa.

2. A arte parece-se com a morte, mas a arte é-nos dada como antídoto à morte. Para a arte a morte é nada, irrealização fantasmagórica, inconsistência. Como a arte é qualquer coisa que persiste para além do bios e do ethos do artista, e da dissolução dos elementos que constituem estes, a arte é sensação que resiste ao des-sensacionalismo da mortalidade. A arte sensacionaliza os seus produtores e os seus consumidores.

3. O valor do prazer alcança a sua expressão na remoção de toda a dor, ao mesmo tempo que se opõe à apatia. O prazer «substancia-se» na sua actualidade. A arte não é como a filosofia uma tendência para a potência, porque a arte é em acto (e apesar de ser em acto potencializa mais do que se fosse potência pura), e a sua temporalidade é este tempo. A arte é ininterrupta e não afecta negativamente os corpos nem as mentes. A arte enriquece sem contrariedades, e é o motor de excelência e de elevação do homem aos seus mais altos limites.

4. Uma vida agradável, por mais sábia, honràvel e justa, é insuficientemente aprazível sem arte. A necessidade da arte advém do suplemento que ela trás pelo facto de existir. É perfeitamente concebível um mundo sem arte, por mais belo, equilibrado, intenso ou perfeito, mas o facto de a arte existir melhora indiscutivelmente essas qualidades.



5. A hipotética inutilidade da arte é assim refutada. O seu porquê não está na satisfação do inferior e frugal mas na realização do superior e perene. Todos os meios para alcançar este estado extremo de felicidade são bons e naturais.

6. Alguns homens pensam que a epicultura é a aquisição de fama e de status, mas a arte não se confunde com uma demonstração de poder. O poder da arte reside exclusivamente no prazer. Só o prazer é um bem natural e seguro, enquanto a fama e o status apelam para situações inseguras e transitórias. A arte é luta, não pela sua visibilidade social, mas pela superação de si mesma, em si mesma e para si mesma. É nisto que a arte se assemelha à natureza.

7. Nenhum prazer autêntico é degradante. O prazer autêntico é força e autonomia. Um vício é apenas o consumo passivo de algo que se parece com o prazer, mas que tende para a destruíção do consumidor, isto é, para a dor e para a morte. O prazer que a arte proporciona aumenta a capacidade de viver, o apetite pela vida e a sua duração.

8. O prazer que a arte proporciona advém da sua interface com a natureza e os desfrutadores. O prazer procura a variedade, como no donjuanismo. Há uma insatisfação de fundo que é o desejo do diverso. Mas o desejo do diverso é das coisas mais desejáveis. Se o prazer não fosse um diferir, a arte seria monotonia. Mas o prazer é a construção de multiplicidades, a diferenciação das diferenças, e através deste processo, um apuramento perceptivo.

9. É esta persistência na experiência e na capacidade diferenciadora que nos livra do medo. Aquele que não experimenta acaba por temer a experimentação. Aquele que teme a diversidade perfere defender a unidade ou a nulidade. O mundo existe não só para que o experimentemos mas também para que lhe adicionemos experiências que aumentem a capacidade de percepção quando o experimentamos. A arte afina a capacidade de experimentar a natureza.

10. A experiencia do mundo tem momentos dolorosos que são compensados pelo prazer. O medo da experiência do mundo é gerado pelo desprazer circunstancial e por alguma inexperiência. A acumulação de medo e de inexperiência leva à rejeição daquilo que nos é dado, do mundo como experiência, assim como da arte que intensifica essa experiência. A epicultura combate esse engano.

11. É pois a ignorância que leva ao obscurantismo anestésico e aos iconoclasmas. A rejeição da arte em nome de «virtudes» corresponde a uma rejeição da intensidade da vida.

12. A arte não deve procurar a legitimidade para além de si mesma e da esfera do prazer. A arte erigida em monumento é uma traição às musas. Toda a burocratização é negação da arte. A arte é desburocratizante. Através da arte o acesso ao prazer é directo, sem intermediários, sem requisitos mínimos e sem autoridades a justificá-lo ou proíbi-lo.



13. Há concepções de prazer (teorias, opiniões, etc.) que flutuam sobre a arte: se essas concepções forem arte aumentam a intensidade; se essas concepções forem burocratizantes limitam e falseiam a arte e diminuem a capacidade de experimentar o prazer.

14. A riqueza que a arte e a natureza oferecem é acessivel e persistente. A riqueza económica e os ideais demasiado abstractos são instáveis. Uns são dificeis de obter e a sua posse pode obstruir os sentidos. Outros entopem os sentidos dogmatizando-os e simplificando-os.

15. O homem que não desfruta do prazer e da arte tem inveja do que os disfruta. Esta inveja leva à injustiça e ao ressentimento.

16. A epicultura é imperturbável, a hipocultura é perturbante.

17. O prazer implica muitas vezes o esforço. O desprazer está na maior parte das vezes ligado à perguiça dos sentidos e da mente.

18. O prazer corporal aumenta depois de um grande esforço. Esse prazer torna-se mais intenso pelo repouso. A satisfação desse repouso provoca um prazer intelectual.

19. Nos momentos mais críticos e perigosos a consciencia de que se viveu o prazer e a epicultura torna esses perigos menos relevantes. Mesmo perante a morte eminente é preferivel ter experimentado o prazer e a arte do que os ter rejeitado.

20. Os limites da vida exigem que tomemos partido contra tudo o que limita a sua experiência.

21. A consciência das sensações pela experiência deixa-nos optar entre as mais desejáveis e as indesejadas.



22. A desobstrução das faculdades mentais através da arte amplia as ambiguidades, diminui a confusão e aumenta a confiança.

23. Quem luta contra as suas sensações luta contra o mundo. Se te concentrares nas tuas sensações, mesmo as mais dolorosas, conseguirás transformá-las e manipulá-las em algo aprazível. É a arte que opera esta transformação.

24. As tuas opiniões, por mais opiniões que sejam, se nasceram de uma experiência de transformação interior são válidas. No entanto deves estar atento às opiniões alheias como possibilidades de experimentação. Mais do que opiniões correctas há opiniões que abrem experiências de vida e outras que as limitam. Segue as opiniões que o levam ao intenso, ao diverso e à discriminação perceptiva.

25. Se uma opinião não for consistente com o teu modus operandi artístico questiona a tua opinião e a tua acção.

26. A consistência da acção e da produção artistica com as teorias deve ser efectiva, mas essa consistência deve ser menos uma relação de causa e de efeito do que uma a interacção entre os pressupostos de uma e da esfera de efeitos e experiências da outra.

27. Se uma atitude artistica conduz à dor própria ou alheia é porque não corresponde a uma necessidade autêntica. Há desejos que elevam e desejos que danificam. A grande arte aprende a distinguir e a praticar os primeiros em deterimento dos segundos

28. Entre todas as virtudes a mais sábia e que melhor assegura a sabedoria é a amizade entre artistas produtivos, a única capaz de assegurar a felicidade pela resposta permanente aos estímulos artísticos.

29. Os que mesmo sendo «artistas» odeiam a arte preferem dizer que ela morreu ou está moribunda. A desconfiança perante tais mortes tão publicitadas é partilhada por aqueles que acreditam na epicultura. A amizade, o entusiasmo e a confiança ilimitada na produção artística não se deixam impressionar por silogismos e teorias que mais não são do que uma demonstração da impotência da hipocultura, mas apenas desta.

30. Há desejos que correspondem a necessidades. Resolver as necessidades torna as carências em prazer. Mas a via do prazer é não só a satisfação dessas necessidades como um suplemento que é como um ornamento que realiza no individual o mundo e o seu direito de ser. Essa ornamentalidade torna o prazer mais intenso. Essa intensidade é a graça, isto é, a exuberância da natureza no seu auge.

31. A naturalização da arte é a não-coacção. A arte exprime a resolução de necessidades que circulam epidermicamente. Essa expressão reflecte-se como um afecto compensador sobre as comunidades que partilham essas necessidades.

32. A epicultura não acredita na resolução integral de todas as necessidades e problemas, porque as necessidades e problemas são de ordem biológica e os organismo necessitam deles «naturalmente» para se autoregenerarem e diversificarem. O que a epicultura luta é para que os problemas sejam menos cruciais e que através do òcio possamos entregar-nos a designíos mais profundos e a uma partilha mais alargada dos prazeres sob o signo da amizade.

33. A epicultura necessita do pudor, da discrição, mas não de segredos. Os segredos implicam a hierarquização de poderes. A confidência faz com que os saberes sejam partilhados e que haja um aumento de complexidade hedónica. A epicultura apenas se contenta com uma «justiça» em que haja reciprocidade entre excelências, por mais divergentes que elas sejam.



34. A epicultura controi-se nas suas adversidades, por si, contra si, num paradigma metamórfico. Mas constroi-se com todos, no não-rebaixamento, no enterlace das disenções, no gestão da diversidade de interesses, no princípio de que o prazer só é prazer se não gerar injustiça física, de direito e de relacionamento. Ao dizermos isto sabemos que a vida é essencialmente conflituosa, mas também sabemos que grande parte dessa conflitualidade é proveniente da burocratização das subjectividades e do desejo de domínio hierarquico.

35. O poder é o prazer de se ter prazer. O reconhecimento do prazer só se faz entre iguais, e o regozijo do prazer alheio provoca um prazer crescente na comunidade (embora também gere invejas). Cada dia se torna mais claro que a cultura é uma rede cada vez mais democrática e sincrética de participações discretas, e que neste imenso processo a participação de cada um é efectiva e inequívoca. Na epicultura a qualidade é em cada eco criativo um eco da multiplicidade de ecos.

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